sábado, 30 de novembro de 2013

Um tratado para estabelecer o governo das multinacionais




As discussões sobre um acordo de livre-comércio entre o Canadá e a U.E foram concluídas em 18 de outubro. Um bom presságio para o governo dos EUA, que espera firmar uma parceria desse tipo com a Europa. Negociado em segredo, permitiria às multinacionais processar qualquer Estado que não siga as normas do liberalismo


por Lori Wallach


É possível imaginar as multinacionais levando aos tribunais os governos cuja orientação política tivesse por efeito diminuir seus lucros? É concebível pensar que elas podem exigir – e conseguir! – uma compensação generosa pela perda de rendimentos causada por um direito do trabalho muito restritivo ou por uma legislação ambiental muito espoliadora? Por mais improvável que possa parecer, esse cenário não é novo. Ele já aparecia com todas as letras no projeto do Acordo Multilateral de Investimentos (AMI), secretamente negociado entre 1995 e 1997 pelos 29 países-membros da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômicos (OCDE).1 Divulgada in extremis, a cópia despertou em vários países uma onda de protestos sem precedentes, forçando seus promotores a mandá-la para a gaveta. Quinze anos depois, ei-la de volta em grande estilo, com uma nova roupagem.

O acordo para criar uma Parceria de Investimento e Comércio Transatlântica (TTIP, na sigla em inglês), negociado desde julho de 2013 pelos Estados Unidos e pela União Europeia, é uma versão modificada do AMI. Ele prevê que as legislações em vigor em ambos os lados do Atlântico estejam em conformidade com as normas de livre-comércio estabelecidas pelas – e para as – principais empresas europeias e norte-americanas, sob pena de sanções comerciais ao país transgressor ou de uma reparação de vários milhões de euros em favor dos queixosos.

De acordo com o calendário oficial, as negociações só devem chegar a um resultado após um prazo de dois anos. O acordo combina, aprofundando-os, os elementos mais nefastos das parcerias efetivadas no passado. Se tivesse entrado em vigor, os privilégios das multinacionais assumiriam força de lei e amarrariam as mãos dos governantes. Impermeável às alternâncias políticas e às mobilizações populares, ele se aplicaria pelo bem ou pela força, já que suas disposições só poderiam ser alteradas com o consentimento unânime dos países signatários. Ele replicaria na Europa o espírito e as modalidades do modelo asiático, o acordo de Parceria Transpacífica (Trans-Pacific Partnership, TPP), que está sendo adotado em doze países depois de ter sido ardorosamente promovido pela comunidade empresarial norte-americana. Juntas, a TTIP e a TPP formariam um império econômico capaz de ditar suas condições para além de suas fronteiras: qualquer país que buscasse estabelecer relações comerciais com os Estados Unidos ou a União Europeia seria forçado a adotar tais e quais as regras que prevalecem no mercado comum deles.


Tribunais especiais


Como almejam liquidar porções inteiras do setor não comercial, as negociações sobre a TTIP e a TPP são realizadas a portas fechadas. As delegações norte-americanas têm mais de seiscentos consultores comissionados pelas multinacionais, que dispõem de acesso ilimitado aos documentos preparatórios e aos representantes do governo. Nada deve ser filtrado. Foi dada a instrução de deixar jornalistas e cidadãos fora das discussões: eles serão informados em tempo hábil, na assinatura do tratado, quando será tarde demais para reagir.

Em uma explosão de sinceridade, Ron Kirk, ex-secretário do Comércio dos Estados Unidos, defendeu as vantagens de “preservar certo grau de discrição e confidencialidade”.2 Na última vez que foi publicada uma versão de um acordo que estava sendo negociado, apontou Kirk, as negociações fracassaram – uma alusão à Área de Livre Comércio das Américas (Alca), um modelo expandido do Acordo de Livre Comércio Norte-Americano (Nafta); o projeto, ferozmente defendido por George W. Bush, foi revelado no site do governo em 2001. Porém, a senadora Elizabeth Warren retruca que um acordo negociado sem nenhum exame democrático nunca deveria ser assinado.3

O imperioso desejo de ocultar a preparação do tratado EUA-UE da atenção do público é facilmente compreensível. É melhor usar o tempo para anunciar ao país os efeitos que ele vai produzir em todos os níveis: desde o topo do governo federal até os conselhos municipais, passando pelos governos e pelas assembleias locais, as autoridades eleitas devem redefinir de alto a baixo suas políticas públicas de maneira a satisfazer os apetites do setor privado, nas áreas que ainda lhe escapam. Segurança alimentar, normas de toxicidade, seguros-saúde, preço dos medicamentos, liberdade na internet, proteção de privacidade, energia, cultura, direitos autorais, recursos naturais, formação profissional, equipamentos públicos, imigração: não há um campo de interesse geral que não passe pelo jugo do livre-comércio institucionalizado. A ação política dos eleitos se limitará a negociar com as empresas ou seus mandatários locais as migalhas de soberania que eles quiserem lhes permitir.

Está desde já estipulado que os países signatários vão assegurar a “colocação em conformidade de suas leis, de seus regulamentos e de seus procedimentos” com as disposições do tratado. Ninguém duvida que eles vão se esforçar para honrar esse compromisso. Caso contrário, poderiam ser objeto de processos diante de um dos tribunais criados para arbitrar disputas entre os investidores e os países, e com o poder de impor sanções comerciais contra estes últimos.

A ideia pode parecer improvável; contudo, ela se inscreve na filosofia dos acordos comerciais já em vigor. No ano passado, a Organização Mundial do Comércio (OMC) condenou os Estados Unidos por latas de atum rotuladas como “sem perigo para os golfinhos”, pela indicação do país de origem em carnes importadas e pela proibição de tabaco com cheiro de bombom, sendo tais medidas de proteção consideradas entraves ao livre-comércio. Ela também infligiu à União Europeia sanções de centenas de milhões de euros por sua recusa em importar transgênicos. A novidade introduzida pela TTIP e pela TTP é que elas permitiriam às multinacionais processar em seu nome um país signatário cuja política tivesse um efeito restritivo sobre sua exploração comercial.

Sob tal regime, as empresas seriam capazes de contrariar as políticas de saúde, de proteção ambiental ou de regulação das finanças em vigor nesse ou naquele país, exigindo uma indenização em tribunais extrajudiciais. Compostas por três advogados da área empresarial, essas cortes especiais que atendem às leis do Banco Mundial e da ONU estariam habilitadas a condenar o contribuinte a pesadas reparações quando sua legislação reduzisse os “lucros futuros esperados” de uma corporação.

Esse sistema “investidor vs.Estado”, que parecia varrido do mapa após o abandono da AMI em 1998, foi restaurado em segredo ao longo dos anos. Em virtude de vários acordos comerciais assinados por Washington, US$ 400 milhões passaram do bolso do contribuinte para o das multinacionais, graças à proibição de produtos tóxicos, ao controle da exploração da água, do solo ou da madeira etc.4 Sob a égide desses mesmos tratados, os procedimentos atualmente em curso – em assuntos de interesse geral, tais como as patentes médicas, a luta antipoluição ou as leis sobre o clima e os combustíveis fósseis – estão elevando os pedidos de indenização a US$ 14 bilhões.

A Parceria de Investimento e Comércio Transatlântica também tornaria mais pesada a fatura dessa extorsão legalizada, dada a importância dos interesses em jogo no comércio entre as regiões. Nos Estados Unidos, com 24 mil filiais, existem 3,3 mil empresas europeias, e cada uma delas poderia se considerar apta a buscar reparação por uma perda comercial. Tal efeito ultrapassaria em muito os custos ocasionados pelos tratados anteriores. Por sua vez, os países-membros da União Europeia se veriam expostos a um risco financeiro ainda maior, sabendo que 14,4 mil empresas norte-americanas têm na Europa uma rede de 50,8 mil filiais. No total, são 75 mil empresas que poderiam se lançar na caça aos tesouros públicos.

Oficialmente, esse sistema deveria de início servir para consolidar a posição dos investidores em países em desenvolvimento desprovidos de um sistema legal confiável; ele lhes permitiria fazer valer seus direitos em caso de desapropriação. Mas a União Europeia e os Estados Unidos não constituem exatamente zonas de ausência de direitos; eles dispõem, ao contrário, de uma justiça funcional e plenamente respeitadora do direito à propriedade. Ao colocá-los sob a tutela de tribunais especiais, a TTIP demonstra que seu objetivo não é proteger os investidores, mas aumentar o poder das multinacionais.


Processo por aumentar o salário mínimo


Os advogados que compõem esses tribunais não têm contas a prestar a nenhum eleitorado. Invertendo alegremente os papéis, eles podem tanto servir como juízes quanto defender a causa de seus poderosos clientes.5 É um mundo bem pequeno esse dos juristas do investimento internacional: eles são apenas quinze a compartilhar entre si 55% dos casos tratados até hoje. Obviamente, suas decisões são finais.

Os “direitos” que eles têm por missão proteger são formulados de maneira deliberadamente vaga, e sua interpretação poucas vezes serve aos interesses da grande maioria. É o caso do direito concedido ao investidor de se beneficiar de um marco regulatório coerente com suas “previsões” – pelo que convém entender que o governo vai proibir a si mesmo de modificar sua política depois que o investimento tiver sido feito. Já o direito de obter uma compensação em caso de “desapropriação indireta” significa que os poderes públicos deverão colocar as mãos no bolso se sua legislação tiver por efeito reduzir o valor de um investimento, inclusive quando essa mesma lei também se aplica a empresas locais. Os tribunais reconhecem igualmente o direito do capital de adquirir cada vez mais terras, recursos naturais, equipamentos, fábricas etc. 

Nenhuma contrapartida por parte das multinacionais: elas não têm obrigação alguma para com os países e podem disparar processos quando e onde lhes convier.

Alguns investidores têm uma concepção muito ampla de seus direitos inalienáveis. Vimos recentemente empresas europeias moverem processos contra o aumento do salário mínimo no Egito ou contra a limitação das emissões tóxicas no Peru.6 Outro exemplo: a gigante dos cigarros Philip Morris, incomodada pelas legislações antifumo do Uruguai e da Austrália, representou contra esses dois países diante de um tribunal especial. O grupo farmacêutico norte-americano Eli Lilly pretende fazer justiça contra o Canadá, culpado de ter criado um sistema de patentes que torna certos medicamentos mais acessíveis. O fornecedor de eletricidade sueco Vattenfall exige vários bilhões de euros da Alemanha por sua “virada energética”, que enquadra mais severamente as centrais de carvão e promete o abandono da energia nuclear.

Não há limite para as penalidades que um tribunal pode impor a um Estado em benefício de uma multinacional. Há um ano, o Equador se viu condenado a pagar a soma recorde de 2 bilhões de euros para uma companhia petrolífera.7 Mesmo quando os governos ganham o processo, eles devem pagar as custas judiciais e as comissões diversas, que atingem em média US$ 8 milhões, de forma que os poderes públicos muitas vezes preferem negociar com o queixoso que defender sua causa no tribunal. Assim, o governo canadense evitou uma convocação para os tribunais anulando rapidamente a proibição de um aditivo tóxico utilizado pela indústria petrolífera.

No entanto, as reclamações não param de crescer. De acordo com a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), o número de casos sujeitos aos tribunais especiais foi multiplicado por dez desde o ano 2000. Desde que foi criado na década de 1950, o sistema de arbitragem comercial nunca prestou tantos serviços aos interesses privados quanto em 2012, ano recorde em termos de abertura de casos. Esse boom criou um florescente viveiro de consultores financeiros e de advogados da área empresarial.

O projeto do grande mercado americano-europeu é apoiado há muitos anos pelo Diálogo Transatlântico de Negócios (TABD, na sigla em inglês), um lobby mais conhecido hoje pelo nome de Transatlantic Business Council (TBC). Criado em 1995 sob o patrocínio da Comissão Europeia e da Secretaria do Comércio norte-americana, esse fórum de empresários ricos faz campanha por um “diálogo” altamente construtivo entre as elites econômicas dos dois continentes, o governo de Washington e os comissários de Bruxelas. O TABD é um fórum permanente que permite às multinacionais coordenar seus ataques contra os políticos que ainda estão de pé em ambos os lados do Atlântico.

Seu objetivo, público, é eliminar o que chama de “discórdias comerciais” (trade irritants), ou seja, operar nos dois continentes sob as mesmas regras e sem interferência dos poderes públicos. “Convergência regulatória” e “reconhecimento mútuo” fazem parte dos painéis semânticos que o TABD exibe para encorajar os governos a permitir produtos e serviços que contrariam as legislações locais.


“Injusta rejeição ao cloridrato de ractopamina”


Mas, em vez de defender uma simples flexibilização das leis existentes, os ativistas do mercado transatlântico se propõem a reescrevê-las eles mesmos. Assim, a Câmara Americana de Comércio e o BusinessEurope, duas das maiores patronais do planeta, pediram aos negociadores da TTIP que reunissem em torno de uma mesa de trabalho um grupo de grandes acionistas e políticos para que “redijam juntos os textos de regulamentação”, que terão em seguida força de lei nos Estados Unidos e na União Europeia. É de perguntar, também, se a presença dos políticos na oficina de escrita comercial é realmente indispensável...

De fato, as multinacionais exibem uma notável franqueza na declaração de suas intenções − por exemplo, na questão dos transgênicos. Enquanto nos Estados Unidos um estado em cada dois planeja tornar obrigatório um rótulo que indique a presença de organismos geneticamente modificados (OGMs) em um alimento – medida desejada por 80% dos consumidores do país –, os industriais do setor agroalimentar batalham pela proibição da rotulagem. A Associação Nacional dos Confeiteiros não mediu palavras: “A indústria norte-americana gostaria que a TTIP avançasse nessa questão, eliminando a rotulagem OGM e as normas de rastreabilidade”. Por sua vez, a muito influente Associação da Indústria de Biotecnologia (BIO, na sigla em inglês), da qual faz parte a Monsanto, fica indignada pelo fato de produtos contendo transgênicos e vendidos nos Estados Unidos poderem obter uma resposta negativa no mercado europeu. Consequentemente, ela espera que o “fosso que se alarga entre a desregulamentação de novos produtos biotecnológicos nos Estados Unidos e sua acolhida na Europa” seja rapidamente preenchido.8 A Monsanto e seus amigos não escondem a esperança de que a zona de livre-comércio transatlântica permita enfim impor aos europeus seu “catálogo abundante de produtos OGM que aguardam aprovação”.9

A ofensiva não é menos vigorosa na área da vida privada. A Coalizão do Comércio Digital (DTC, na sigla em inglês), que agrupa industriais da internet e da alta tecnologia, pressiona os negociadores da TTIP a remover as barreiras que impedem os fluxos de dados pessoais de se espalhar livremente da Europa para os Estados Unidos. “O ponto de vista atual da UE, segundo o qual os Estados Unidos não oferecem uma proteção ‘adequada’ da vida privada, não é razoável”, impacientam-se os lobistas. À luz das revelações de Edward Snowden sobre o sistema de espionagem da Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês), essa opinião não deixa de fazer sentido. No entanto, ela não se iguala à declaração do US Council for International Business, um grupo de empresas que alimentaram maciçamente a NSA com dados pessoais: “O acordo deveria procurar circunscrever as exceções, como a segurança e a vida privada, para garantir que elas não sirvam como entraves disfarçados ao comércio”.

As normas de qualidade na alimentação também são tomadas como alvo. A indústria de carnes dos Estados Unidos pretende obter a supressão da regra europeia que proíbe frangos desinfectados com cloro. Na vanguarda dessa luta, o grupo Yum, dono da cadeia de fast-food KFC, pode contar com o poder de fogo das patronais. “A UE autoriza somente o uso da água e do vapor de água nas carcaças”, protesta a Associação Americana da Carne, enquanto outro grupo de pressão, o Instituto Americano da Carne, lamenta a “recusa injustificada [por Bruxelas] das carnes com adição de beta-agonistas como o cloridrato de ractopamina”. A ractopamina é uma droga usada para inflar o teor de carne magra em suínos e bovinos. Por causa dos riscos para a saúde dos animais e dos consumidores, ela é proibida em 160 países, incluindo membros da União Europeia, a Rússia e a China. Para a indústria de carne de porco norte-americana, essa medida de proteção constitui uma distorção da livre concorrência na qual a TTIP deve colocar um fim com urgência.
 
“Os produtores de carne suína dos EUA não aceitarão nenhum outro resultado que não seja o levantamento do embargo europeu da ractopamina”, ameaça o Conselho Nacional dos Produtores de Porco (NPPC, na sigla em inglês). Durante esse tempo, do outro lado do Atlântico, os industriais do BusinessEurope denunciam as “barreiras que afetam as exportações europeias para os Estados Unidos, como a lei sobre a segurança alimentar”. Desde 2011, esta permite que os serviços de controle retirem do mercado produtos de importação contaminados. Mais uma vez, os negociadores da TTIP são convidados a fazer tábua rasa disso.
O mesmo acontece com as emissões de gases de efeito estufa. A organização Airlines for America (A4A), o braço armado dos transportes aéreos norte-americanos, estabeleceu uma lista de “regulamentações inúteis que trazem prejuízo considerável à indústria” e que a TTIP, é claro, poderia riscar do mapa. No topo dessa lista está o sistema europeu de troca de cotas de emissões, que obriga as companhias aéreas a pagar por sua poluição de carbono. Bruxelas suspendeu temporariamente esse programa; a A4A exige a supressão definitiva em nome do “progresso”.

Mas é no setor financeiro que a cruzada dos mercados é mais virulenta. Cinco anos após a eclosão da crise dos subprimes, os negociadores concordaram que as veleidades de regulação da indústria financeira já tiveram seu tempo. O quadro que eles desejam colocar em prática prevê remover todas as barreiras em matéria de investimentos de risco e impedir os governos de controlar o volume, a natureza e a origem de produtos financeiros colocados no mercado. Em suma, trata-se pura e simplesmente de eliminar do mapa a palavra regulação.

De onde vem esse extravagante retorno aos velhos tempos thatcheristas? Em particular, ele responde aos desejos da Associação de Bancos Alemães, que não deixa de expressar suas “preocupações” com a reforma, ainda que tímida, de Wall Street adotada no rescaldo da crise de 2008. Um de seus membros mais empreendedores sobre essa questão é o Deutsche Bank, que recebeu, em 2009, centenas de bilhões de dólares do Federal Reserve em troca de títulos lastreados em hipotecas.10 O mastodonte alemão quer acabar com a regulamentação Volcker, a pedra angular da reforma de Wall Street, que exerce, segundo ele, “uma pressão pesada demais sobre os bancos não americanos”. A Insurance Europe, a ponta de lança das empresas de seguros europeias, deseja de seu lado que a TTIP “remova” as garantias colaterais que dissuadem o setor de se aventurar em investimentos de alto risco.

Já o Fórum dos Serviços Europeu, patronal da qual faz parte o Deutsche Bank, trava há anos conversas de bastidores para que as autoridades de controle norte-americanas parem de enfiar o nariz nos assuntos dos grandes bancos estrangeiros que operam em seu território. Do lado dos Estados Unidos, espera-se sobretudo que a TTIP venha a enterrar para sempre o projeto europeu de taxação sobre as transações financeiras. O caso parece estar contornado, posto que a própria Comissão Europeia considerou que a taxa não está de acordo com as regras da OMC.11 Na medida em que a zona de livre-comércio transatlântica promete um liberalismo ainda mais desenfreado que o da OMC, e como o Fundo Monetário Internacional (FMI) se opõe sistematicamente a qualquer forma de controle sobre os movimentos de capitais, a frágil “taxa Tobin” não preocupa mais muita gente nos Estados Unidos.

Mas o canto de sereia da desregulamentação não se faz ouvir apenas na indústria financeira. A TTIP tenciona abrir para a concorrência todos os setores “invisíveis” ou de interesse geral. Os países signatários se veriam obrigados não só a submeter seus serviços públicos à lógica do mercado, mas também a renunciar a qualquer intervenção sobre os prestadores de serviços estrangeiros que cobiçam seus mercados. As margens de manobra política em matéria de saúde, energia, educação, água ou transporte seriam reduzidas a um fio. A febre comercial também não poupa a imigração, já que os instigadores da TTIP se arrogam a competência de estabelecer uma política comum nas fronteiras – sem dúvida para facilitar a entrada daqueles que têm um bem ou um serviço para vender, em detrimento de outros.

Nos últimos meses, o ritmo das negociações se intensificou. Em Washington, há boas razões para acreditar que os líderes europeus estão dispostos a fazer qualquer coisa para reviver um crescimento econômico moribundo, ainda que à custa de uma negação de seu pacto social. O argumento dos defensores da TTIP, segundo o qual o livre-comércio desregulamentado facilitaria as trocas comerciais e seria, portanto, gerador de empregos, aparentemente pesa mais do que o medo de um terremoto social. As barreiras tarifárias que ainda persistem entre a Europa e os Estados Unidos são, no entanto, “já bastante baixas”, como reconheceu o representante de Comércio dos Estados Unidos.12 Os próprios artífices da TTIP admitem que seu principal objetivo não é reduzir as restrições alfandegárias, de qualquer maneira insignificantes, mas impor “a eliminação, a redução e a prevenção de políticas nacionais supérfluas”,13 sendo considerado “supérfluo” tudo que retarda o escoamento de bens, tais como a regulação financeira, a luta contra o aquecimento global e o exercício da democracia.

É verdade que os poucos estudos consagrados às consequências da TTIP quase não se detêm sobre suas consequências sociais e econômicas. Um relatório frequentemente citado, oriundo do Centro Europeu de Economia Política Internacional (Ecipe, na sigla em inglês), afirma, com a autoridade de um nostradamus de escola de comércio que a TTIP vai fornecer à população do mercado transatlântico um aumento de riqueza de 3 centavos per capita e por dia... a partir de 2029.14

Apesar de seu otimismo, o mesmo estudo estima em apenas 0,06% a alta do PIB na Europa e nos Estados Unidos após a entrada em vigor da TTIP. Mesmo tal “impacto” é altamente irreal, já que seus autores postulam que o livre-comércio “dinamiza” o crescimento econômico − uma teoria regularmente refutada pelos fatos. Além disso, uma elevação tão infinitesimal seria imperceptível. Em comparação, o lançamento do iPhone5 da Apple levou os Estados Unidos a um aumento oito vezes mais significativo do PIB.

Quase todos os estudos sobre a TTIP foram financiados por instituições favoráveis ao livre-comércio ou por organizações empresariais, razão pela qual os custos sociais do tratado não aparecem neles, assim como suas vítimas diretas, que, no entanto, se poderiam contar em centenas de milhões. Mas os jogos ainda não foram jogados. Como o mostraram as desventuras da AMI, da Alca e de algumas rodadas de negociações da OMC, o uso do “comércio” como um cavalo de troia para desmantelar as proteções sociais e instaurar a junta dos encarregados de negócios fracassou em várias ocasiões no passado. Nada diz que o mesmo não acontecerá desta vez. 
Lori Wallach 


Diretora do Public Citizen’s Global Trade Watch.

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