- Por Heloisa Lupinacci
Dia desses, em um restaurante de comida baiana, o cliente
entrou, sentou e perguntou ao garçom: “Que cerveja tem?” O garçom pegou o
cardápio e respondeu: “Mais de cem”. Faz mais ou menos 10 anos que tudo
começou a mudar – e de três anos para cá, de forma cada vez mais
intensa. Estamos no meio de uma transição, batizada, pelos entusiastas,
de revolução cervejeira. Ela consiste, principalmente, em ampliar tanto a
variedade da oferta quanto da demanda de cervejas. Ela é responsável
pela propagação de termos como ale e lager, porter e stout, dunkel e
krytal.
No Brasil, essa revolução tem dois marcos iniciais. Começou a
fermentar com a chegada da Erdinger, em 2001, que ensinou para quase
todo mundo que cerveja pode ser de trigo, que pode ter ritual de serviço
e que não precisa não ter gosto. E com a ampliação da distribuição da
Colorado, que, aberta em meados dos anos 1990, ganhou força de
distribuição também no começo dos anos 2000. Pronto, agora além de
cerveja importada especial, havia cerveja brasileira especial também.
Dez anos depois, o mercado no Brasil deu o primeiro sinal de mudança:
“Em 2010, pela primeira vez, houve desaceleração do crescimento das
cervejas populares; enquanto as microcervejarias crescem sem parar”, diz
José Raimundo Padilha, sommelier da The Beer Planet.
As novas cervejas começaram a conquistar os bebedores. Cada vez mais
gente passou a explorar esse novo terreno e a cansar da cerveja comum.
FOTO: Fernando Sciarra/Estadão
A cerveja comum é conhecida como “tipo Pilsen”, referência ao estilo
criado em Pilsen, na República Tcheca. Mas na verdade o que vem na
garrafa é uma american light lager. O que isso quer dizer? É uma lager,
ou seja, uma cerveja que fermenta em baixa temperatura – o que gera
menos compostos de sabor –, é clara e tem origem nos EUA. É uma cerveja
com “baixa carga sensorial”, um jeito chique de falar que não tem gosto.
É feita para matar a sede, para ser tomada bem gelada, e, por ter pouco
álcool, para ser bebida em grandes quantidades. Ela quase não tem
amargor, não tem muito cheiro, é desenhada para agradar um amplo
espectro de paladares (ou melhor, para não desagradar).
Em contraponto, a cerveja especial pode ser de muitos tipos, pode ter
todos os aromas imagináveis e complexidade de sabor que exige bom
vocabulário para ser descrita. Viva a revolução, que tem como principal
vitória a diversificação da oferta – o Paladar prefere muitas opções a
poucas. Mas na esteira dessa transformação, submersos no mar de cerveja,
se falam e se ouvem algumas besteiras.
A primeira delas é: “agora não bebo mais cerveja industrial”. “Do
ponto de vista do processo, toda cerveja é industrial”, crava a
sommelière de cerveja Cilene Saorin. “A diferença é o porte: há
cervejarias de grande porte e de pequeno porte.” Mas antes de dizer “é
isso, eu não tomo cerveja de cervejaria de grande porte”, continue
ouvindo Saorin: “As cervejarias de grande porte têm acesso a uma série
de tecnologias e competências que garantem a qualidade da cerveja.”
Se industrial é um adjetivo objetivo, grande é bem relativo. Tão
relativo que, na Holanda, grande é a cervejaria que produz mais de 200
mil hectolitros por ano; na Alemanha, é aquela que produz mais de 500
mil hectolitros por ano, e nos EUA, é a que passa de 7 milhões de
hectolitros anuais. Noves fora, quer dizer, tirando as megacervejarias,
fizemos uma prova dos nove, com rótulos percebidos como artesanais, mas
produzidos em fábricas industriais e em escala suficiente para que sejam
distribuídos ao redor do globo.
Tamanho não é fermento
Nos EUA, segundo definição da Brewers Association, uma cervejaria que
produz até 18 mil hectolitros por ano é micro. Entre 18 mil e 7 milhões
de hectolitros/ano, é pequena. Uma série de outros parâmetros foram
criados para justificar que, mesmo com produção imensa, a cervejaria
seja considerada artesanal (matéria-prima usada e quem é o dono da
cervejaria, por exemplo). No Brasil, foi criada há um mês a Associação
Brasileira dos Microcervejeiros. Um de seus objetivos é definir quem é
pequeno e quem é grande – para reduzir incongruências relativas a
imposto. “Vamos nos espelhar no modelo dos EUA”, diz Marcelo Carneiro,
presidente da Associação e da Colorado. Para se ter uma ideia de escala,
em duas horas, a Ambev faz a mesma quantidade de cerveja que a Colorado
produz em um ano (Caros leitores, na edição impressa do Paladar,
essa frase saiu formulada de maneira equivocada, dando a entender que a
produção de uma hora da Ambev é igual à produção anual da Colorado. O
que apenas comprova a máxima de que jornalista, e em especial esta aqui,
é ruim de conta).
Clique na imagem para ampliá-la. Foto e Infográfico: Fernando Sciarra/Estadão
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