A questão é que, quando uma grande economia investe nesse ritmo para criar empregos e riqueza, possivelmente não obterá retorno de grande parte dos investimentos
O editor de economia da BBC, Robert Peston, investigou
como a desaceleração econômica da China pode levar a uma "terceira onda"
da crise econômica que abalou o mundo em 2008. Além do artigo abaixo, o
resultado desse trabalho é a reportagem especial "How China Fooled the
World" ("Como a China enganou o mundo", em tradução livre), transmitido
no Reino Unido pelo canal de TV BBC 2 nesta semana .
Poucas pessoas já ouviram falar da cidade chinesa de
Wuhan. Mas ela, mais do que qualquer outra cidade do país, evidencia
como as três extraordinárias décadas de modernização e enriquecimento da
China, bem como seu milagre econômico, parecem estar perto do fim - e
por que isso traz um sério risco para os mercados mundiais.
O prefeito de Wuhan, Tang Liangzhi, está gastando o
equivalente a quase R$ 800 bilhões em um plano de desenvolvimento de
cinco anos que tem como objetivo transformar a cidade - que já tem 10
milhões de habitantes - em uma megametrópole mundial capaz de disputar
com Xangai o posto de segunda maior cidade do país.
O ritmo dos gastos em Wuhan é impressionante: estão em
construção centenas de edifícios residenciais, anéis viários, pontes,
ferrovias, um sistema de metrô e um aeroporto internacional. O centro da
cidade está sendo demolido para dar lugar a um centro comercial,
incluindo um arranha-céu de mais de 600 metros de altura que custará R$
11,9 bilhões.
A reforma de Wuhan serve para contar uma história mais
ampla. Nos últimos anos, a China construiu um novo arranha-céu a cada
cinco dias, mais de 30 aeroportos, sistemas de metrô em 25 cidades, as
três pontes mais extensas do mundo e mais de 9,6 mil quilômetros de
rodovias de alta velocidade, além de empreendimentos imobiliários
comerciais e residenciais em larga escala.
Há duas formas de enxergar esse movimento: trata-se, é
claro, de uma modernização necessária em um país que se urbaniza
rapidamente. Mas é também um sintoma de uma economia desequilibrada,
cujas recentes fontes de crescimento não são sustentáveis. Associada às
recentes tensões nos mercados financeiros, a desaceleração econômica
chinesa pode ser vista como uma terceira onda da crise iniciada em 2007 e
2008 (a primeira foi a crise em Wall Street e na City de Londres; a
segunda, a da zona do euro).
Estímulo
Em 2008, após o colapso do
banco Lehman Brothers, o mundo presenciou um encolhimento dramático do
comércio mundial. Isso foi catastrófico para a China, que tinha um
crescimento muito dependente das exportações ao Ocidente. Quando as
economias ocidentais pararam, diversas fábricas chinesas foram
paralisadas. Na ocasião, a BBC testemunhou hordas de migrantes chineses
pobres sendo forçados a voltar para suas aldeias. A situação alarmou o
governo e ameaçou o acordo implícito entre o Partido Comunista e a
população chinesa, que abriu mão de direitos democráticos em troca de
prosperidade econômica.
Como resposta, o governo chinês lançou um pacote de
estímulo de dimensões gigantescas - o equivalente a R$ 1,5 trilhão de
gastos estatais diretos - e instruiu que bancos "abrissem a carteira" e
emprestassem dinheiro como se não houvesse amanhã. A estratégia
funcionou, a seu modo. Enquanto muitas das economias ocidentais e o
Japão estagnaram, a China viveu anos de grande expansão, retomando o
crescimento na casa dos 10% anuais. Mas as fontes de crescimento eram
limitadas e, desde então, mudaram.
Excessos e crédito
Mesmo antes do
pacote de estímulo, a China investia a taxas maiores do que quase todos
os demais países na história. Antes da crise de 2008, o investimento
estava em torno de 40% do PIB, três vezes mais do que a maioria dos
países desenvolvidos. Após a crise, graças aos estímulos e às obras de
infraestrutura, os investimentos subiram para 50% do PIB, um nível sem
precedentes, e ali continuaram.
A questão é que, quando uma grande economia investe
nesse ritmo para criar empregos e riqueza, possivelmente não obterá
retorno de grande parte dos investimentos - que são muito maiores do que
qualquer decisão racional dos empresários. É por isso que a China tem
vastos empreendimentos imobiliários - ou mesmo cidades inteiras - com
luzes que nunca foram acesas e com estradas que mal foram percorridas
por veículos. O que torna tóxica uma grande parte desse investimento é
seu financiamento: uma explosão nos empréstimos. A proporção das dívidas
chinesas em relação ao PIB tem crescido rapidamente.
A analista Charlene Chu, que era da agência Fitch,
explica a fartura de crédito: "A maioria das pessoas sabem que houve uma
grande expansão de crédito na China, mas não conhecem sua dimensão. No
começo de 2008, o setor bancário chinês tinha um tamanho em torno de US$
10 trilhões. Agora, tem entre US$ 24 e 25 trilhões. Esse aumento é
equivalente ao total do setor bancário comercial americano, que levou
mais de um século para ser constituído".
O Ocidente aprendeu a duras penas os perigos de um
sistema financeiro que cria muito crédito rapidamente. Além disso, no
caso da China, boa parte dos endividamentos está oculta, financiada por
instituições chamadas de "shadow banks" (bancos sob a sombra, em
tradução literal), à margem do sistema financeiro tradicional. Não há
exceções na história das finanças: conceder empréstimos nessa escala faz
com que os devedores não consigam quitar suas dívidas e implica em
grandes perdas aos credores. A questão não é se isso vai acontecer, mas
quando e qual a dimensão dos seus efeitos. É por isso que vimos alguns
episódios recentes de estresse nos mercados financeiros chineses, o que
pode prenunciar problemas mais graves.
Perigos
Quando o crescimento é
gerado por um grande período de investimento lastreado em dívida, há
dois desdobramentos possíveis: se essa grande expansão é encerrada cedo o
bastante e de modo controlado e a economia é retomada de maneira
sustentável, ocorre uma retração econômica, mas desta forma evita-se um
desastre. No entanto, se a concessão de crédito passa dos limites, uma
crise se torna inevitável. Então, qual será o desfecho do milagre
econômico chinês?
O governo anunciou reformas que, em tese, podem
reequilibrar a economia nos próximos anos ao trocar o investimento
baseado em crédito por outro baseado no consumo. Mas as reformas estão
em estágio inicial, e a concessão de crédito continua. E mais: a atual
explosão de investimentos nos setores imobiliário e de infraestrutura
tem gerado tantos lucros a milhares de autoridades do Partido Comunista
que há dúvidas quanto à habilidade do governo central em implementar
mudanças.
Além disso, existem as consequências sociais: um
crescimento econômico mais lento pode não ser suficiente para satisfazer
a ânsia dos chineses por mais empregos e um padrão de vida melhor, algo
que pode desencadear protestos populares. Mas e se a bonança de crédito
não for contida? Poderíamos estar diante de uma crise que chacoalharia
não apenas a China, mas o mundo inteiro.
O recente crescimento chinês deu forma ao mundo como o
conhecemos hoje: propiciou aos ocidentais a compra de produtos baratos
e, para países exportadores (como o Brasil), a venda de commodities. O
outro lado é que os preços mundiais dos alimentos e da energia subiram e
a influência chinesa no resto do mundo mudou o equilíbrio de poder
global. Será que uma China enfraquecida traria benefícios ao Ocidente?
Talvez não fosse algo totalmente ruim. Mas uma China repentinamente
incapaz de prover o crescente padrão de vida esperado por seu povo seria
um país mais instável - e também mais perigoso.
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