O ex-presidente considera esgotado o projeto político do PT e acredita que seja necessária a entrada de ar fresco: “Chegou o momento da mudança e de gente com uma nova visão”
Luis Prados /
Carla Jiménez
São Paulo
23 FEV 2014 - 19:23 BRT
El País
El País
Pai
do Plano Real, que acabou com o dragão da inflação e que completa agora
20 anos, e arquiteto, junto com o seu sucessor, Luiz Inácio Lula da
Silva, do período de maior prosperidade e democracia da história do
Brasil, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (Rio de Janeiro, 1931)
repassa, em conversa com o EL PAÍS, a encruzilhada brasileira neste ano
de Copa do Mundo e eleições, enquanto o idílio dos mercados com o
gigante sul-americano parecer ter definitivamente acabado.
De
uma elegância pessoal e intelectual pouco frequente entre os políticos,
o líder histórico do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB)
considera esgotado, apesar de reconhecer seus méritos, o projeto
político do Partido dos Trabalhadores (PT), acredita que seja necessária
a entrada de ar fresco nos palácios do poder – “chegou o momento da
mudança, e é necessária gente com uma visão diferente” – e expressa sua
preocupação de que o Brasil perca espaço no cenário internacional e na
América Latina em particular.
Pergunta. Há algum tempo parece que acabou o idílio dos mercados com o Brasil, que a confiança se perdeu. O que está acontecendo?
Resposta. Exageraram
sobre os sucessos, como agora estão exagerando com as dificuldades. Nem
antes voávamos tão alto, nem agora estamos tão mal. Perdeu-se o ímpeto
das condições externas favoráveis e das reformas anteriormente feitas,
que na verdade não aprofundamos. Não percebemos que vivíamos uma janela
de oportunidade, não um estado permanente. O Governo Lula teve um erro
estratégico e outro de gestão. O primeiro foi a crença de que haveria um
declínio do Ocidente, o que, salvo o caso da China, é discutível. Acho
ótimo que as relações Sul-Sul tenham sido fortalecidas, mas não em
detrimento das relações com o mundo ocidental. Além disso, houve também
uma espécie de grande ilusão, como se a pedra filosofal tivesse sido
descoberta, com o crédito e o consumo como chaves do crescimento. E isso
é metade verdade, a outra metade é que falta investimento. Foram
paralisadas as reformas e existiu também um temor metafísico das
privatizações, o que paralisou o investimento em infraestruturas
enquanto havia abundância de capitais.
P. Pelo que o senhor diz, parece que o país está sequestrado pelos preconceitos ideológicos do PT.
R. Sim,
acredito que haja algo assim. Não tanto no sentido do socialismo, mas
no sentido da ingerência estatal. Aqui não há nada de socialismo. O que
há é a visão de que a alavanca governamental pode tudo. Criaram
realmente um casamento entre as empresas e os bancos públicos. Eu sempre
digo que o que importa é que existam regras de mercado, não de negócios. Negócios não são algo que o governo tenha que fazer.
P. O que além do mais costuma gerar corrupção...
R. A
corrupção foi mais grave antes, durante o Governo anterior. A novidade é
que a corrupção agora é grupal, e antes era individual, e isso causa
uma espécie de absolvição: se é para o partido, então não é pecado.
Porém, o mais grave é o descrédito crescente da classe política. O
Congresso dá a impressão para o povo de que não discute nada relevante, e
que os temas são tratados pelo Executivo. A agenda política nacional é
um pouco semelhante à do tempo do regime militar, quando o Governo
anunciava projetos de impacto para a sociedade, e o Congresso era
mantido à margem.
A novidade é que a corrupção agora é grupal e isso causa uma espécie de absolvição: se é para o partido, então não é pecado
P. Alguns analistas afirmam que o PT confunde partido e Estado.
R. Pois
é. A diferença entre o PSBD e o PT não é a política econômica, é a
política. A ideia de se a sociedade civil deve ter um papel maior ou
menor. Estamos voltando a uma situação que tem raízes profundas no
Brasil e no mundo ibérico. No México, quando o PRI assumiu, tinha uma
frase que resumia isso, aquela de que “fora do orçamento não há
salvação”. Aqui estamos nos aproximando disso. Todos querem ter um
pedaço do orçamento, que não é de esquerda nem de direita. É
corporativismo e clientelismo.
P. No entanto, parece haver quem queira outra coisa.
R. Sim,
as manifestações populares vão nessa direção. Não têm consciência plena
de seus objetivos, mas expressam um mal-estar. Não tenho certeza de que
o Governo ganhará as eleições. Tem chances de ganhar, tem poder, tem
recursos e tudo isso, mas há um sentimento de mal-estar que não é
exatamente um sentimento antigoverno ou anti-PT. É um sentimento mais
generalizado. Há tanta propaganda de que o Brasil é uma maravilha, do
Brasil oficial…, mas existe o Brasil real, que tem problemas. Não é tão
mau como antes, melhorou, mas as pessoas querem mais. Querem uma coisa
que antes não queriam com tanta ênfase: qualidade e justiça. Não sou
pessimista, mas, como pano de fundo, há uma crise mundial da democracia
representativa. É uma situação delicada, que exige uma liderança com
mais visão.
P. Recentemente,
a diretora do IBOPE nos dizia que há um desejo de mudança na opinião
pública, mas que a oposição não conseguia representar esse sentimento.
R. Em
um determinado momento, as ideias políticas precisam ter alguém que as
expresse. Agora não é possível expressá-las, porque a televisão só
informa sobre o Governo. Além disso, há outro fenômeno que ainda não
sabemos avaliar, que são as redes sociais, que criam correntes de
opinião, com as quais os partidos ainda não sabem lidar.
P. Também existe a sensação de que falta um projeto nacional.
R. É
um pouco isso que ocorre. Falta alguém que formule o projeto, de
maneira acessível, para a população. É preciso usar uma linguagem mais
verdadeira. Aqui as pessoas estão acostumadas a um discurso que não é
sincero. A crise não nos afeta, a culpa é do estrangeiro etc. Não. Temos
problemas, podemos vencê-los, mas temos problemas. Tomara que algum
candidato, espero que do meu partido, tenha a coragem de dizer as coisas
com sensatez, de uma maneira que convença as pessoas de que há um
caminho. E não é fácil, porque perdemos um bom momento para continuar
ajustando o Brasil.
P. O senhor acredita que o Brasil entrará em recessão neste ano?
R. O
crescimento será pequeno. Acredito que chegará o momento em que, quem
quer que seja o ganhador das eleições, deverá ser feito um ajuste.
Provavelmente em 2015. E, seja quem for o governante, passará por
momentos difíceis, porque o ajuste sempre é duro. Não sou pessimista
sobre o Brasil, porque as bases da economia são boas... Mas isso não
significa que o Governo não tenha que tomar medidas. Em termos
comparativos, o México está melhor agora porque está vinculado aos
Estados Unidos, e os mexicanos estão fazendo algumas reformas. Demoraram
muito para fazê-las, mas agora estão fazendo. Há energia e espírito
para fazê-las. A Colômbia também.
P. Inclusive o Peru.
R. Sim,
os países do Pacífico. O Brasil perdeu importância na América Latina. O
que está acontecendo agora na Venezuela. Qual é a palavra do Governo do
Brasil?
P. Houve uma declaração do Mercosul…
R. Foi
uma vergonha. O Brasil não tem essa posição, não pode ter essa posição.
Perde relevância assim. O Governo, desde a época do Lula, tem sido
muito temeroso com o que acontece no arco bolivariano, sem se dar conta
de que o outro arco, o do Pacífico, está avançando e nós estamos
isolados. Acredito que chegou o momento de mudar quem manda hoje. Não
digo que eles não possam voltar, nem acredito que tudo o que foi feito
estava errado. Não estava. Mas chegou a hora. Quatro anos de mais do
mesmo é perigoso. Ainda que nos próximos quatro anos o Governo entenda
que precisa fazer coisas, fará contra o seu sentimento mais profundo, e
isso não funciona bem.
P. Por que a oposição ainda não consegue se mostrar como algo distinto, como uma verdadeira alternativa?
R. Acho
que faltou a convicção de que o que diziam era correto. Houve uma
espécie de rebaixamento ideológico. As pessoas acreditaram muito na
palavra do PT. É preciso ser mais frontal. Agora há possibilidades
porque eles estão agindo mal. Agora há mal-estar, é o momento no qual
todos podem escutar outra voz. Tomara que ela exista e que seja ouvida.
Hoje, pela primeira vez, vamos para eleições em que setores importantes
do Governo passaram para a oposição: Marina Silva e Eduardo Campos. Os
dois foram ministros do Lula. Isso significa que provavelmente a
diferença de votos tão forte que Dilma obteve no Nordeste e no Norte do
país não irá se repetir. Primeiro porque Campos é do Nordeste, de
Pernambuco, e tem força ali. Segundo porque a oposição ganhou na Bahia,
em Alagoas, em Sergipe, no Piauí, no Pará e no Amazonas. Isso
provavelmente diminui a votação de Dilma por lá, e de São Paulo para o
Sul nós sempre ganhamos. Aécio Neves tem a vantagem de ter Minas Gerais,
que é um Estado forte. A briga estará em São Paulo e, até certo ponto,
no Rio de Janeiro. Há melhores oportunidades. Se serão concretizadas ou
não depende não só da economia, mas da Copa do Mundo, do sentimento das
pessoas, do desempenho dos candidatos. Porque em países como o Brasil,
em que os partidos contam pouco, o que conta são as pessoas.
P. Que reformas são prioritárias?
R. A
primeira reforma é a política. É difícil imaginar que seja possível um
país funcionar com 30 partidos no Congresso e 39 ministérios, é uma
receita para a paralisia do sistema. Esse sistema precisa mudar, mas não
há força no interior dos partidos que se mova nessa direção. Quando
fizemos a Constituição, nunca imaginamos que existiriam 30 partidos, que
não são partidos, mas grupos de interesse que buscam participar do
saque ao Estado.
P. Já faz 15 anos que se fala de reforma política...
R. A presidenta Dilma
tentou fazê-la durante as manifestações de junho, porém não houve uma
articulação, houve somente um ímpeto presidencial positivo. Acho que
agora é tarde, porque já estamos em campanha eleitoral. É preciso
fazê-la antes ou depois. E exige grandeza.
P. Como romper esse isolamento do Brasil na América Latina de que o senhor falou antes?
R. Deve
ser rompido com ações, não com palavras, e acho que chegou o momento de
uma mudança de Governo. É preciso gente com uma visão distinta. Seria
positivo para o Brasil que a oposição ganhasse, não necessariamente o
meu partido, mas a oposição. O Mercosul foi positivo, permitiu que ao
menos Brasil e Argentina superassem sua relação de tensão, o comércio
foi intensificado entre os dois países, mas se estancou. E agora é
realmente uma camisa de força, porque a economia brasileira cresceu
muito, superando o Mercosul. Teríamos que mudar, mas envolve outra visão
estratégica. Que vai acontecer nos próximos 20 anos? Acredito que
haverá uma consolidação da relação entre China e EUA, e Europa, e o
tabuleiro mundial terá mais jogadores. O problema é que o Brasil tem
tudo para entrar nesse jogo, mas também tem tudo para perdê-lo se não se
consolidar, atuando, tomando posição na América Latina, por exemplo.
Por que não dizer uma palavra sobre a Venezuela, nem a favor nem contra,
mas de diálogo, de entendimento?
P. Na relação de Brasil com Cuba, o que pesa mais? A busca de benefícios ou as razões ideológicas?
R. Existem
as duas coisas. O que mais me preocupa é por que as coisas não são
feitas com mais clareza, por que os acordos são tão secretos. Por si só,
que o Brasil esteja se posicionando no Caribe não é ruim. Nunca tive
posição anticubana, nunca apoiei o embargo norte-americano. Mas o modo
como as coisas são feitas dá a impressão de que há algo mais ideológico
do que pragmático.
P. Foi perdida a oportunidade de se entender com Obama?
R. Acredito
que sim, mas sou crítico com muitas coisas, por exemplo, com a questão
da espionagem, que é inaceitável. Acho que Dilma teve razão quando não
foi aos EUA naquele momento, mas eu teria adiado a viagem, e não
cancelado. E, em seguida, tomou a decisão sobre os aviões de combate. Na
minha época, a Força Aérea era favorável aos aviões suecos, mas por que
fazer isso imediatamente depois? Não são gestos construtivos, e isso
não quer dizer que o Brasil tenha que se alinhar com os EUA, mas não
precisa ter uma atitude antiamericana, porque não corresponde ao mundo
atual.
P. O que deve mudar no PSDB para que o Brasil se case novamente com o partido?
R. Acreditar
que tem algo de melhor qualidade para oferecer ao povo. Os brasileiros
querem padrão global, melhor saúde, melhor educação, melhor segurança,
melhor transporte… É preciso demonstrar que é melhor modernizar em
benefício do povo do que não fazer nada e fazer demagogia. O candidato
deve inspirar confiança. O que falta a Dilma é essa confiança de que ela
é capaz de levar o país adiante. Agora por parte dos setores altos e
médios, amanhã do povo.
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