domingo, 17 de novembro de 2013

Bom dia, tristeza


 
Demetrio Magnoli no Imil na sala de aula

Acordei anteontem sob o impacto da notícia da expedição de mandados de prisão para os condenados do “mensalão”. Uma tristeza, inicialmente indefinível, tomou conta de mim. Sim: eles devem ser presos, em nome da democracia e da justiça. Sim: a prisão deles é um sinal de que a igualdade perante a lei ainda tem uma chance na nossa pobre república habitada por tantas figuras “mais iguais” que as demais. Por que, então, a tristeza?

Os integrantes do núcleo político do “mensalão” foram condenados sem provas, por um recurso à teoria do domínio do fato, alegam ali (no PT, em sites chapa-branca financiados com dinheiro público) e aqui (neste espaço, por comentaristas que não se preocupam com a duplicidade de critérios morais), numa tentativa canhestra de confundir o público. A teoria do domínio do fato, amplamente utilizada nos tribunais brasileiros, não equivale a uma noção arbitrária de “responsabilidade objetiva”, que é coisa de tiranias, e não dispensa provas. Ela é uma ferramenta analítica destinada a identificar responsabilidades em crimes cometidos pelo concurso de agentes: no julgamento de uma quadrilha de assaltantes de banco, serão imputadas penas não só aos que empunharam armas, mas também aos planejadores da ação. Sobram provas nos autos do processo do “mensalão”. Não: a lenda do “julgamento político” não me comove nem um pouco.

A Ação Penal 470 é “um ponto fora da curva”, dizem alguns cínicos e incontáveis porta-vozes informais do governo. O diagnóstico é compartilhado por não poucos advogados de boa-fé que se habituaram às transações internas de nossa elite de fidalgos a ponto de confundirem impunidade com justiça. Talvez seja mesmo: o STF nem mesmo abriu processo contra Antonio Palocci, apesar dos indícios clamorosos de que o então ministro cometeu um crime de Estado, violando o sigilo bancário de uma testemunha sem posses ou poder. Mas, se assim for, que o “ponto” inaugure uma nova “curva”, traçada por um compasso que não reconheça privilégios derivados do convívio nos palácios. Não: o ineditismo real ou suposto da prisão de gente de “sangue azul” não é o que me entristece.

Na hora em que li a notícia da prisão iminente dos cérebros do “mensalão” veio-me à mente uma frase de Leon Trotsky, pronunciada perante uma maioria stalinista hostil que o isolava no Partido Comunista: “Em última análise, o Partido está sempre certo, porque é o único instrumento histórico que a classe trabalhadora tem para a solução de suas tarefas fundamentais. Só podemos ter razão com o Partido e através do Partido, porque a História não criou nenhuma outra forma para a realização do nosso direito. Os ingleses têm um lema: Meu país, certo ou errado’. Com muito maior justificação, podemos dizer: meu Partido, certo ou errado.” Dirceu, Genoino e Delúbio não são revolucionários, nem de longe, mas herdaram da tradição comunista a convicção de que o Partido possui direitos extraordinários, oriundos de uma aliança especial com a História. Por pensarem isso, agora se declaram “presospolíticos”. Sim, estou triste e sei por quê: eles não aprenderam nada, depois de um quarto de século de democracia.

Dirceu et caterva aparentemente não desviaram dinheiro público para formar patrimônios privados próprios, mas para estabilizar e reproduzir um sistema de poder. Eles fizeram o que fizeram em nome dessa ideia: a Verdade do Partido. É bom, muito bom, que a Corte diga-lhes que nossa República não reconhece nenhuma verdade transcendental. Não estou triste, mas feliz, com o triunfo da mensagem de que a corrupção em nome de uma causa, de um Partido ou da História, escrita assim com maiúscula, é um crime tão grave quanto a corrupção em nome do vil metal. Entristece-me, isso sim, a constatação inevitável de que nossa democracia, imperfeita mas real, não conseguiu civilizá-los.
Fonte: Folha de S. Paulo

Nenhum comentário:

Postar um comentário