Autor: Demétrio Magnoli
Acordei anteontem sob o impacto da notícia da
expedição de mandados de prisão para os condenados do “mensalão”. Uma
tristeza, inicialmente indefinível, tomou conta de mim. Sim: eles devem
ser presos, em nome da democracia e da justiça. Sim: a prisão deles é um
sinal de que a igualdade perante a lei ainda tem uma chance na nossa
pobre república habitada por tantas figuras “mais iguais” que as demais.
Por que, então, a tristeza?
Os integrantes do núcleo político do “mensalão” foram condenados sem
provas, por um recurso à teoria do domínio do fato, alegam ali (no PT,
em sites chapa-branca financiados com dinheiro público) e aqui (neste
espaço, por comentaristas que não se preocupam com a duplicidade de
critérios morais), numa tentativa canhestra de confundir o público. A
teoria do domínio do fato, amplamente utilizada nos tribunais
brasileiros, não equivale a uma noção arbitrária de “responsabilidade
objetiva”, que é coisa de tiranias, e não dispensa provas. Ela é uma
ferramenta analítica destinada a identificar responsabilidades em crimes
cometidos pelo concurso de agentes: no julgamento de uma quadrilha de
assaltantes de banco, serão imputadas penas não só aos que empunharam
armas, mas também aos planejadores da ação. Sobram provas nos autos do
processo do “mensalão”. Não: a lenda do “julgamento político” não me
comove nem um pouco.
A Ação Penal 470 é “um ponto fora da curva”, dizem alguns cínicos e
incontáveis porta-vozes informais do governo. O diagnóstico é
compartilhado por não poucos advogados de boa-fé que se habituaram às
transações internas de nossa elite de fidalgos a ponto de confundirem
impunidade com justiça. Talvez seja mesmo: o STF nem mesmo abriu
processo contra Antonio Palocci, apesar dos indícios clamorosos de que o
então ministro cometeu um crime de Estado, violando o sigilo bancário
de uma testemunha sem posses ou poder. Mas, se assim for, que o “ponto”
inaugure uma nova “curva”, traçada por um compasso que não reconheça
privilégios derivados do convívio nos palácios. Não: o ineditismo real
ou suposto da prisão de gente de “sangue azul” não é o que me
entristece.
Na hora em que li a notícia da prisão iminente dos cérebros do
“mensalão” veio-me à mente uma frase de Leon Trotsky, pronunciada
perante uma maioria stalinista hostil que o isolava no Partido
Comunista: “Em última análise, o Partido está sempre certo, porque é o
único instrumento histórico que a classe trabalhadora tem para a solução
de suas tarefas fundamentais. Só podemos ter razão com o Partido e
através do Partido, porque a História não criou nenhuma outra forma para
a realização do nosso direito. Os ingleses têm um lema: Meu país, certo
ou errado’. Com muito maior justificação, podemos dizer: meu Partido,
certo ou errado.” Dirceu, Genoino e Delúbio não são revolucionários, nem
de longe, mas herdaram da tradição comunista a convicção de que o
Partido possui direitos extraordinários, oriundos de uma aliança
especial com a História. Por pensarem isso, agora se declaram
“presospolíticos”. Sim, estou triste e sei por quê: eles não aprenderam
nada, depois de um quarto de século de democracia.
Dirceu et caterva aparentemente não desviaram dinheiro público para
formar patrimônios privados próprios, mas para estabilizar e reproduzir
um sistema de poder. Eles fizeram o que fizeram em nome dessa ideia: a
Verdade do Partido. É bom, muito bom, que a Corte diga-lhes que nossa
República não reconhece nenhuma verdade transcendental. Não estou
triste, mas feliz, com o triunfo da mensagem de que a corrupção em nome
de uma causa, de um Partido ou da História, escrita assim com maiúscula,
é um crime tão grave quanto a corrupção em nome do vil metal.
Entristece-me, isso sim, a constatação inevitável de que nossa
democracia, imperfeita mas real, não conseguiu civilizá-los.
Fonte: Folha de S. Paulo
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