Nesta
terça-feira (23/2), a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça vai
julgar se o Código de Processo Penal se sobrepõe a decisões da Corte
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) ou se a Justiça brasileira
está obrigada a cumprir o que manda o tribunal internacional. Nessa
data, continuará o julgamento de um Recurso Especial do Ministério
Público do Paraná contra decisão do TJ do estado que determinou o
trancamento de ação penal que a CIDH mandou abrir.
O ministro
Rogério Schietti deve levar seu voto-vista na questão à próxima sessão
da turma, no processo que ficou conhecido como “caso Sétimo Garibaldi”.
Até agora, apenas o relator, o desembargador convocado Ericson Maranho,
votou, e pelo não conhecimento do Recurso Especial.
A discussão
envolve uma decisão da Corte Interamericana que mandou reabrir as
investigações da morte do sem terra Sétimo Garibaldi. Ele morreu em
1998, durante um ataque de 20 homens encapuzados a um assentamento do
Movimento dos Sem Terra (MST). Eles foram ao assentamento de madrugada e
fizeram disparos a esmo, só que um deles atingiu Garibaldi, que morreu
no mesmo dia em decorrência dos ferimentos.
O inquérito durou
quatro anos, e resultou na prisão em flagrante de Ailton Lobato pela
suspeita de ter sido ele o autor do tiro. Morival Favoretto, dono da
Fazenda São Francisco, onde estava o assentamento, era suspeito de ser o
mandante do crime.
Em maio de 2004, a Justiça do Paraná
determinou o arquivamento do inquérito a pedido da Promotoria de Justiça
de Loanda (PR). O MP-PR alegou falta de indícios da autoria do crime.
Disse ao juiz que todas as testemunhas confirmaram o ataque e que os
mascarados exigiam a saída do MST. No entanto, enquanto algumas
testemunhas disseram que Ailton Lobato foi quem deu o tiro que matou
Garibaldi, outras disseram não ter identificado ninguém entre os
mascarados.
Por conta dessa decisão, a viúva de Sétimo representou
contra a Justiça brasileira na Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH) e foi ao Tribunal de Justiça do Paraná com um mandado de
segurança. A CIDH decidiu levar o caso á Corte Interamericana, mas o TJ
manteve o inquérito trancado — com a ressalva de que, caso houvesse
novas provas, o CPP autorizaria a reabertura das investigações.
Novas provas, novo trancamento
A CIDH "reinvestigou" o caso e ouviu novas testemunhas. Duas delas
apresentaram novas provas e descreveram novos cenários do caso. E então a
Corte Interamericana condenou o Brasil a reabrir o caso e investigar se
as suspeitas de que Morival Favoretto mandou Ailton Lobato e seu bando
expulsarem os sem-terra de sua fazenda e acabaram matando Sétimo
Garibaldi.
Com base na decisão da CIDH e com a comprovação de que
de fato os novos depoimentos traziam outras informações ao caso, a
Justiça do Paraná determinou a reabertura das investigações e a
instauração de ação penal.
Favoretto, então, impetrou um Habeas
Corpus no Tribunal de Justiça do Paraná, que trancou a ação penal — além
de censurar a reabertura do caso. De acordo com o TJ-PR, “não havendo a
produção de ‘novas provas’ que modificassem a matéria de fato e
autorizassem o oferecimento da denúncia em desfavor do paciente, é de
rigor que se reconheça estar sofrendo de constrangimento ilegal”.
No
entendimento dos desembargadores paranaenses, “o oferecimento da
denúncia, com fundamento em base empírica existente em inquérito
policial arquivado, a pedido do MP, constitui constrangimento ilegal e
viola o princípio constitucional da segurança jurídica, pois, se assim
não for, o investigado, a qualquer momento, antes de consumado o prazo
prescricional, poderá ser submetido a processo penal”.
Tratados internacionais
É contra essa decisão do TJ-PR que o Ministério Público interpôs um
Recurso Especial. De acordo com a Procuradoria-Geral de Justiça do
Paraná, os desembargadores violaram o artigo 68, parágrafo 1º, da
Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário,
que diz: “Os Estados Partes na Convenção comprometem-se a cumprir a
decisão da Corte em todo caso em que forem partes”.
De acordo com o
MP, a Justiça brasileira tem obrigação de cumprir com esse dispositivo.
Isso porque a Emenda Constitucional 45/2004, que fez a reforma do
Judiciário, estabeleceu que todos os tratados e convenções
internacionais dos quais o Brasil seja signatário e tenham sido
aprovados pelo Congresso Nacional (como é o caso da Convenção Americana
de Direitos Humanos) são “equivalentes às emendas constitucionais".
O
MP-PR também aponta que, em 2008, o Supremo Tribunal Federal decidiu,
no Recurso Extraordinário 466343-1, que “os tratados internacionais de
direitos humanos têm o condão de paralisar a eficácia jurídica de
qualquer dispositivo de lei interna que eventualmente conflite com o
tratado”.
Isso porque o TJ-PR baseou sua decisão no artigo 18 do
Código de Processo Penal, que autoriza a polícia a “proceder a novas
pesquisas, se de outras provas tiver notícia”. O tribunal também afirma
que a Súmula 524 do Supremo Tribunal Federal só autoriza o início de
ação penal baseada em inquérito arquivado se houver “provas novas”.
Para
o Ministério Público do Paraná, o TJ “deixou de cumprir a parte que lhe
cabia na execução da sentença da Corte Interamericana de Direitos
Humanos, sequer se esforçando para harmonizar seu conteúdo com a
aplicação e a interpretação do direito interno”.
De acordo com o
MP, o TJ errou, “seja por censurar o desarquivamento, seja por trancar a
ação penal, mesmo admitindo de forma expressa que a denúncia possuía
justa causa”.
Inteligência do CPP
O desembargador convocado ao STJ Ericson Maranho, do TJ de São Paulo,
votou para manter o caso arquivado. No entendimento dele, a ação penal
só poderia ter sido oferecida se houvesse “efetiva existência de provas
novas”. É o que ele diz ser a “inteligência do artigo 18 do CPP e da
Súmula 524 do STF”.
De acordo com Maranho, o TJ-PR, “após
percuciente” análise dos autos, entendeu que as novas provas não foram
suficientes para mudar o “panorama probatório” e autorizar a reabertura
do caso.
Ele explica que o artigo 18 do CPP e a súmula do Supremo
tratam de momentos diferentes da persecução penal. Enquanto o CPP fala
de reabertura de investigações, o verbete do STF trata da abertura de
ação penal com base em inquérito arquivado a pedido da polícia ou o do
MP. Nesses casos, diz Maranho, “provas novas devem ser aquelas
substancialmente novas — aquelas realmente desconhecidas anteriormente
por qualquer das autoridades”.
No caso, segundo o desembargador,
“não se verifica o ineditismo probatório necessário para autorizar o
desarquivamento do inquérito policial, visto que os fatos apontados como
novos não alteraram o quadro que gerou o arquivamento do procedimento
policial”.
Depois do voto de Maranho, o ministro Rogério Schietti
pediu vista. Queria analisar justamente o confronto entre o CPP, a
súmula do Supremo e a eficácia das decisões da Corte Interamericana de
Direitos Humanos. O voto dele será lido nesta terça-feira (23/2), na da
6ª Turma.
REsp 1.351.177
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