quinta-feira, 11 de agosto de 2016

China, economia de mercado?

Da forma mais discreta possível, autoridades da área comercial de todos os países-membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) estão discutindo um tema tecnicamente delicado, que poderá ter desdobramentos políticos a partir de 2017: a China seria, de fato, uma economia de mercado?

O Protocolo de Acessão da China à OMC, assinado em dezembro de 2001, dispõe sobre as obrigações que permitem o ingresso do país no sistema multilateral do comércio. As modificações a que, para isso, o governo chinês deveria proceder, previstas pelo protocolo, englobam obrigações relativas a câmbio, subsídios, transparência das medidas, políticas de controle de preços, tratamento concedido a empresas comerciais estatais, direito ao comércio e investimentos, entre outras. A OMC, por esse documento, decidiu que o país asiático não seria tratado como economia de mercado até dezembro de 2016. A China, no entanto, considera que depois dessa data, de forma automática, não mais poderá ser vista como uma economia em transição e que ao país deverão ser aplicadas as regras vigentes a todas as economias de mercado.

A questão não é simples porque as organizações internacionais e países-membros da OMC diferem quanto ao conceito de economia de mercado. No Brasil, a avaliação sobre economia de mercado está regulada pela Circular 59/2001, que em seu artigo 3.º estabelece que, para avaliação da existência de condições de economia de mercado, serão observados, entre outros itens, o grau de controle governamental sobre as empresas ou sobre os meios de produção; o nível de controle estatal sobre a alocação de recursos, preços e decisões de produção de empresas; a legislação aplicável em matéria de propriedade, investimento, tributação e falência; o grau em que os salários são determinados livremente em negociações entre empregadores e empregados; o grau em que persistem distorções herdadas do sistema de economia centralizada relativas a, entre outros aspectos, amortização dos ativos, outras deduções do ativo, trocas diretas de bens e pagamentos sob a forma de compensação de dívidas, além do nível de interferência estatal sobre operações de câmbio.

Quais as consequências do reconhecimento da China como economia de mercado? Do ponto de vista das empresas, o principal efeito será sobre o método de cálculo para a aplicação de medidas de defesa comercial em relação a dumping ou subsídios. E também pela possibilidade de continuar a utilizar salvaguardas para conter o rápido aumento de importações.

Caso algum país reconheça a China como economia de mercado, haverá a obrigatoriedade da utilização dos preços praticados no mercado interno chinês para o cálculo da margem de dumping. Em face de distorções existentes no mercado interno chinês, o resultado poderão ser margens de dumping menores e mesmo a perda da eficácia da medida antidumping. O reconhecimento também implicaria dificuldades na superação de desafios relacionados a eventuais desalinhamentos cambiais (em razão do controle da taxa de câmbio pela China) e subsídios fornecidos pelo governo chinês a setores econômicos específicos, por exemplo. Levando em conta as distorções existentes no mercado chinês, o resultado prático tenderá à fixação de margens de dumping menores ou mesmo negativas, o que impossibilitaria a aplicação da medida antidumping.

Alternativamente, se um país não reconhecer a China como economia de mercado, será preservado, mesmo após dezembro de 2016, o recurso à metodologia aplicada hoje em relação à apuração de margens de dumping, visto que os preços praticados internamente podem ser descartados em razão de sua artificialidade. Em seu lugar seriam usados valores alternativos, tal como o preço de venda em economias realmente de mercado (exemplo: Alemanha), o que permitiria o estabelecimento de margens mais elevadas de dumping. Também continuariam a ser aplicadas, após consulta bilateral, salvaguardas pelo tempo necessário para prevenir ou conter importações em quantidade ou sob condições que causem ou ameacem causar distorções no mercado doméstico do país de destino.

Em 2004 o Brasil assinou o Memorando de Entendimento com a República Popular da China sobre Cooperação em Matéria de Comércio e de Investimento, reconhecendo a China como economia de mercado. Em mais um exemplo da maneira equivocada como agia o lulopetismo, o memorando não entrou em vigor porque até hoje não foi oficialmente internalizado por ato do Executivo.

Na última reunião do G-20, em Xangai, e mais recentemente por correspondência de altos funcionários chineses, as autoridades brasileiras receberam uma clara mensagem: a China espera que seja mantido o compromisso do memorando de 2004.

O setor privado brasileiro está dividido, mas a maioria das associações empresariais tem-se manifestado contrária ao reconhecimento do novo status da China pelas consequências negativas sobre a preservação de seus interesses comerciais.

O assunto está em consideração pelo governo brasileiro, que deve dar uma orientação para as empresas que se sintam prejudicas pela agressiva ação comercial chinesa. Tendo em vista o prazo até dezembro, não há urgência na definição da posição oficial. Melhor fariam as autoridades competentes se seguissem a atitude da Europa e dos EUA no sentido de evitar uma definição pública sobre a questão mesmo depois de dezembro. Não seria adequado fixar agora as diretrizes de governo por decreto ou outra medida burocrática, nem desenvolver uma nova metodologia para o cálculo de margens de dumping.

A Câmara de Comércio Exterior (Camex), em seu novo formato, vinculada à Presidência da República, deveria examinar o assunto e decidir sobre a política a ser seguida tendo em vista, sobretudo, a nossa defesa comercial.


Fonte: O Estado de S.Paulo.

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