Da forma mais discreta possível, autoridades da área comercial de
todos os países-membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) estão
discutindo um tema tecnicamente delicado, que poderá ter desdobramentos
políticos a partir de 2017: a China seria, de fato, uma economia de
mercado?
O Protocolo de Acessão da China à OMC, assinado em dezembro de 2001,
dispõe sobre as obrigações que permitem o ingresso do país no sistema
multilateral do comércio. As modificações a que, para isso, o governo
chinês deveria proceder, previstas pelo protocolo, englobam obrigações
relativas a câmbio, subsídios, transparência das medidas, políticas de
controle de preços, tratamento concedido a empresas comerciais estatais,
direito ao comércio e investimentos, entre outras. A OMC, por esse
documento, decidiu que o país asiático não seria tratado como economia
de mercado até dezembro de 2016. A China, no entanto, considera que
depois dessa data, de forma automática, não mais poderá ser vista como
uma economia em transição e que ao país deverão ser aplicadas as regras
vigentes a todas as economias de mercado.
A questão não é simples porque as organizações internacionais e
países-membros da OMC diferem quanto ao conceito de economia de mercado.
No Brasil, a avaliação sobre economia de mercado está regulada pela
Circular 59/2001, que em seu artigo 3.º estabelece que, para avaliação
da existência de condições de economia de mercado, serão observados,
entre outros itens, o grau de controle governamental sobre as empresas
ou sobre os meios de produção; o nível de controle estatal sobre a
alocação de recursos, preços e decisões de produção de empresas; a
legislação aplicável em matéria de propriedade, investimento, tributação
e falência; o grau em que os salários são determinados livremente em
negociações entre empregadores e empregados; o grau em que persistem
distorções herdadas do sistema de economia centralizada relativas a,
entre outros aspectos, amortização dos ativos, outras deduções do ativo,
trocas diretas de bens e pagamentos sob a forma de compensação de
dívidas, além do nível de interferência estatal sobre operações de
câmbio.
Quais as consequências do reconhecimento da China como economia de
mercado? Do ponto de vista das empresas, o principal efeito será sobre o
método de cálculo para a aplicação de medidas de defesa comercial em
relação a dumping ou subsídios. E também pela possibilidade de continuar
a utilizar salvaguardas para conter o rápido aumento de importações.
Caso algum país reconheça a China como economia de mercado, haverá a
obrigatoriedade da utilização dos preços praticados no mercado interno
chinês para o cálculo da margem de dumping. Em face de distorções
existentes no mercado interno chinês, o resultado poderão ser margens de
dumping menores e mesmo a perda da eficácia da medida antidumping. O
reconhecimento também implicaria dificuldades na superação de desafios
relacionados a eventuais desalinhamentos cambiais (em razão do controle
da taxa de câmbio pela China) e subsídios fornecidos pelo governo chinês
a setores econômicos específicos, por exemplo. Levando em conta as
distorções existentes no mercado chinês, o resultado prático tenderá à
fixação de margens de dumping menores ou mesmo negativas, o que
impossibilitaria a aplicação da medida antidumping.
Alternativamente, se um país não reconhecer a China como economia de
mercado, será preservado, mesmo após dezembro de 2016, o recurso à
metodologia aplicada hoje em relação à apuração de margens de dumping,
visto que os preços praticados internamente podem ser descartados em
razão de sua artificialidade. Em seu lugar seriam usados valores
alternativos, tal como o preço de venda em economias realmente de
mercado (exemplo: Alemanha), o que permitiria o estabelecimento de
margens mais elevadas de dumping. Também continuariam a ser aplicadas,
após consulta bilateral, salvaguardas pelo tempo necessário para
prevenir ou conter importações em quantidade ou sob condições que causem
ou ameacem causar distorções no mercado doméstico do país de destino.
Em 2004 o Brasil assinou o Memorando de Entendimento com a República
Popular da China sobre Cooperação em Matéria de Comércio e de
Investimento, reconhecendo a China como economia de mercado. Em mais um
exemplo da maneira equivocada como agia o lulopetismo, o memorando não
entrou em vigor porque até hoje não foi oficialmente internalizado por
ato do Executivo.
Na última reunião do G-20, em Xangai, e mais recentemente por
correspondência de altos funcionários chineses, as autoridades
brasileiras receberam uma clara mensagem: a China espera que seja
mantido o compromisso do memorando de 2004.
O setor privado brasileiro está dividido, mas a maioria das
associações empresariais tem-se manifestado contrária ao reconhecimento
do novo status da China pelas consequências negativas sobre a
preservação de seus interesses comerciais.
O assunto está em consideração pelo governo brasileiro, que deve dar
uma orientação para as empresas que se sintam prejudicas pela agressiva
ação comercial chinesa. Tendo em vista o prazo até dezembro, não há
urgência na definição da posição oficial. Melhor fariam as autoridades
competentes se seguissem a atitude da Europa e dos EUA no sentido de
evitar uma definição pública sobre a questão mesmo depois de dezembro.
Não seria adequado fixar agora as diretrizes de governo por decreto ou
outra medida burocrática, nem desenvolver uma nova metodologia para o
cálculo de margens de dumping.
A Câmara de Comércio Exterior (Camex), em seu novo formato, vinculada
à Presidência da República, deveria examinar o assunto e decidir sobre a
política a ser seguida tendo em vista, sobretudo, a nossa defesa
comercial.
Fonte: O Estado de S.Paulo.
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