17/01/2013 às 00h00
Em abril de 1961, o
recém-eleito presidente John F Kennedy lançou uma ofensiva contra um
fenômeno que, temia ele, poderia minar o futuro dos EUA: evasão fiscal
agressiva. Em mensagem ao Congresso, ele protestou contra o uso
injustificável de paraísos fiscais por um número crescente de empresas
para reduzir seus deveres tributários doméstico e no exterior.
Mais de 50 anos depois, a retórica política parece ser idêntica,
repercutindo o ataque de Kennedy contra "esquemas artificiais". Mais uma
vez, as empresas estão sendo criticadas pelo uso de estruturas
empresariais que remetem lucros para países onde os impostos são baixos.
Está se intensificando a ira política diante dos baixos impostos pagos
por multinacionais como a Apple, Google e Amazon, num período de cortes
brutais nos gastos públicos.
Nos EUA, a poderosa Comissão de Investigações do Senado atacou as
"brechas" e "truques" usados para transferir lucros para o exterior. Na
Austrália, um ministro do Tesouro criticou empresas multinacionais como
praticantes de um "jogo tributário nada justo". No Reino Unido, o
primeiro-ministro David Cameron enviou um recado contundente aos líderes
empresariais: "Estamos jogando limpo com vocês, vocês têm de jogar
limpo com a gente". Pascal Saint-Amans, principal autoridade tributária
da OCDE, diz que a pressão política deixou de ser retórica e representa
uma virada da maré, contra a evasão por grandes grupos empresariais. "O
agressivo planejamento tributário dos últimos 20 anos foi realizado com a
cumplicidade dos próprios governos para enfrentar a 'guerra
tributária'", diz ele.
Reino Unido, Alemanha e França têm exercido influência em favor de uma revisão dos padrões tributários internacionais
Galvanizando uma ação coordenada, o Reino Unido, a Alemanha e a
França têm exercido sua influência em favor de uma revisão urgente dos
padrões tributários internacionais, que, segundo afirmam, defrontam-se
com "dificuldades para acompanhar as mudanças nas práticas das empresas
que atuam em todo o mundo, como o desenvolvimento do comércio eletrônico
nas atividades comerciais".
As possíveis reformas começarão a tomar forma no próximo mês, em
reunião do Grupo dos 20 na Rússia, onde a OCDE, sediada em Paris,
lançará um relatório preliminar sobre o status quo tributário. Os
governos já estão "batendo cabeças" com as empresas sobre até que ponto
irão as medidas.
Em novembro, eles reuniram-se para discutir propostas visando
endurecer as regras sobre a migração artificial de lucros para paraísos
fiscais. Embora essas reuniões sejam normalmente burocráticas e
monótonas, a sessão em Paris foi marcada por um senso mais palpável de
tensão.
Apesar dos protestos das empresas, os ministérios das finanças
precisam dar satisfação a uma opinião pública cada vez mais irada, para a
qual as regras tributárias mundiais têm sido fraudadas em benefício das
multinacionais. "Tudo isso está acontecendo contra um pano de fundo de
antiglobalização e protecionismo. Os políticos estão começando a sentir
as vibrações", diz Jeffrey Owens, professor de Economia e Negócios na
Universidade de Viena.
Multinacionais feridas por prejuízos à sua reputação acusam os
governos de culpar as empresas por um sistema que os próprios Estados
conceberam para atrair investidores. Quando o Google, que migrou bilhões
de dólares da Irlanda para as Bermudas, para submeter-se a uma alíquota
tributária de apenas 3,2%, em 2011, no exterior, foi criticado por
políticos. Eric Schmidt, presidente do conselho executivo da companhia,
insistiu que a estrutura tributária foi "baseada nos incentivos que os
governos nos ofereceram para operar".
A Irlanda, onde o Google emprega 3 mil pessoas de 65 países numa
antiga região de cais em Dublin, cobra, em impostos, uma porção mínima
dos bilhões de lucros do Google com vendas no exterior que são
contabilizadas no país. Isso é conseguido mediante o uso, pelo Google de
uma "dupla estrutura irlandesa", que explora diferentes definições de
residência tributária na Irlanda e códigos tributários americanos. A
unidade irlandesa paga royalties ao Google no paraíso fiscal de Bermudas
pelo uso da propriedade intelectual da própria empresa.
O esquema do Google é, acima de tudo, um sintoma de falhas no sistema
tributário americano. Scott Hodge, presidente da Tax Foundation, um
grupo de pesquisas apartidário em Washington, diz que esse tipo de
"ginástica de planejamento tributário" é "a resposta que poderíamos
esperar quando as empresas são sujeitas a um sistema tributário
hermético e defasado".
Além de praticar a maior alíquota tributária no mundo
industrializado, os EUA são cada vez mais atípicos pelo fato de tributar
os lucros das empresas em todo o mundo. Para reduzir esses
inconvenientes para suas empresas que concorrem no exterior, os EUA
permitem que elas adiem o recolhimento de impostos a ser pagos nos EUA
sobre lucros no exterior até que estes sejam repatriados.
Desde 1997, Washington tornou o sistema tributário mais favorável às
empresas, aprovando uma legislação referida como "check-the-box" (que
permite a empresas não incorporadas a escolher se desejam ser tributadas
como sociedades anônimas ou companhias limitadas), o que abriu novas
oportunidades para alocar lucros em paraísos fiscais sem ter de investir
em operações efetivas lá. As empresas passaram a ter novo incentivo
para migrar de lucros tributáveis de países onde os impostos são altos,
por meio de pagamentos de juros ou royalties, reduzindo as alíquotas
tributárias médias aplicáveis a empresas americanas no exterior.
Na Europa, os problemas são agravados pelas regras antidiscriminação
consagradas no Tratado de Roma, de 1957, que têm dificultado o
policiamento de fronteiras tributárias nacionais. "As atuais regras no
mercado único permitem que as empresas estruturem esquemas com tais
jurisdições através do Estado membro de reação mais débil, isso não
apenas corrói as bases tributárias dos Estados membros como também
coloca em risco as condições de justa concorrência entre as empresas",
diz o novo relatório da Comissão Europeia sobre planejamento tributário
agressivo.
Economias emergentes, em especial potências como o Brasil, a China e a
Índia, também estão sentindo as consequências. Em matéria de tributação
internacional as normas existentes protegem apenas os interesses dos
países desenvolvidos, disse o governo indiano na ONU em março de 2012,
num sinal de frustração diante da capacidade das multinacionais de
desviarem lucros por meio de royalties e taxas de administração e de
depositá-los em países mais tributariamente amistosos. "Os países do
Bric estão dizendo: vocês estão saqueando nossos mercados", diz o
executivo de uma multinacional.
Pequim está cada vez mais resistente a esforços no sentido de que
suas companhias sejam caracterizadas como fabricantes "sob contrato"
(terceirizados) que operam a baixas margens de lucro, argumentando que
sua própria competência técnica, infraestrutura e enorme população
implicam que um valor substancial é criado na China e deveria ser
tributável no país. O Brasil rejeitou abordagens convencionais para a
determinação do volume de impostos a ser pago por multinacionais, em
favor de um esquema mais simples e mais rígido que assume margens fixas
de lucro generalizadas para todo um setor de atividade econômica.
Diante de demandas conflitantes, o frágil consenso internacional
sobre a alocação dos lucros das multinacionais corre o risco de um
colapso. Ressaltando os perigos da não colaboração dos governos na
formulação de reformas, a OCDE adverte: "As consequências podem ser
prejudiciais em termos de maiores possibilidades de desalinhamentos,
mais descordos, maior incerteza para as empresas, uma briga pela posição
de ser o primeiro (país) a "agarrar" o lucro tributável recorrendo a
supostas medidas antiabuso ou uma nivelação por baixo em matéria de
impostos de renda sobre grandes empresas".
Não há receita mágica para resolver a questão da migração dos lucros,
adverte a OCDE. Mas a organização está cada vez mais confiante em
mudanças técnicas que tornarão o sistema mais robusto. As novas
diretrizes sobre ativos intangíveis defendidas pela OCDE faria com que
as empresas parassem de transferir lucros para companhias de fachada em
paraísos fiscais, mas não impediriam a transferência de propriedade
intelectual e outros intangíveis para um país com baixos impostos, caso
as empresas tenham operações comerciais efetivas lá.
A OCDE provavelmente também proporá uma ofensiva contra a exploração
de arbitragem - diferenças entre códigos tributários de diferentes
países -recomendando aos governos que se recusem a conceder deduções
tributárias sobre rendas que serão não tributadas em outra jurisdição.
Reformas nas regras que afetam as empresas de comércio eletrônico também
estão sob consideração. Propostas similares estão sendo defendidas pela
Comissão Europeia.
Alguns fatores já estão operando a favor dos governos: cobranças da
opinião pública e de investidores por maior transparência, crescente
consciência e renovada percepção dos riscos do planejamento tributário
extremado para a reputação das empresas e a capacidade recém-adquirida
de transpor as barreira de sigilo das empresas registradas em paraísos
fiscais.
Mas tentativas de reforma baterão de frente contra poderosa oposição.
As forças da competição tributária - inclusive a tentação de
apoderar-se de lucros mais móveis, como os derivados de propriedade
intelectual, continuam a ser significativas. Apesar da intensificação da
retórica, os governos devem avançar com cautela, por temer um
esfriamento dos investimentos devido à repressão contra a evasão
tributária.
No Reino Unido, por exemplo, ao mesmo tempo em que lidera os esforços
internacionais para colaborar em reformas, o ministro das Finanças
George Osborne está, neste ano, lançando uma "caixa de patentes",
oferecendo uma alíquota tributária reduzida sobre lucros derivados de
certos tipos de propriedade intelectual e um regime semelhante aos
aplicáveis a veículos financeiros em paraísos fiscais, para melhorar a
capacidade do Reino Unido de atrair sedes de empresas.
A erradicação da evasão pode, paradoxalmente, intensificar uma
concorrência entre países baseada em alíquotas tributárias. James Hines,
da Universidade de Michigan, diz que os paraísos fiscais "desempenham
um papel importante como válvulas de pressão", permitindo que grandes
países cobrem impostos mais altos de empresas nacionais, sem afastar
investidores internacionais ou desencadear "guerras tributárias".
As alíquotas de impostos nos países industrializados já foram
reduzidas em quase 50%, para menos de 30%, desde a década de 1980, numa
tendência que não mostra sinais de chegar ao fim. A pressão deverá se
intensificar, caso os EUA entrem na briga. O Fundo Monetário
Internacional acredita que uma reforma substancial no imposto de renda
nos EUA poderá provocar uma reação de competição tributária por outros
países.
Tendo em vista que os governos em todo o mundo estão tentando
controlar seus déficits, eles brigarão para defender receitas
tributárias oriundas do setor privado e que têm se mantido amplamente
estáveis em 8% a 10% do total nos últimos 50 anos. Uma alternativa
provável seria obter uma receita bem maior originada de impostos sobre o
consumo, o que só faria crescer a desigualdade da distribuição de
renda.
A partir de meados dos anos 1980, os governos vêm tornando mais
amistoso o sistema tributário ao qual as empresas estão submetidas", diz
Owens. "Agora é hora de retribuir".
(tradução Sérgio Blum)
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