quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Desmitificando o "elemento de empresa" na atividade intelectual exercida pelo empresário

Publicado por Marcelo Cometti -



28
De acordo com artigo 966, § único do CC, não se considerada empresário quem exerce profissão intelectual de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.

O citado dispositivo legal exclui, portanto, do conceito de empresário aqueles que têm no exercício de atividade intelectual, sua profissão. É o caso dos médicos, dentistas, escritores, escultores, que mesmo exercendo suas profissões de natureza científica, literária ou artística com profissionalismo e de forma organizada, não serão considerados empresários.

Conforme Alfredo de Assis Gonçalves Neto (Direito de Empresa. RT, 2010, p. 74), não é empresário quem exerce atividade intelectual por qualquer meio, organizadamente ou não, em caráter profissional ou não, qualquer que seja o volume, intensidade ou quantidade de sua produção. Neste sentido mesmo sentido, estabelece o Enunciado 193 da III Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho Federal de Justiça, que “o exercício de atividade de natureza exclusivamente intelectual está excluído do conceito de empresa”.

Portanto, a atividade intelectual, ainda que econômica e exercida profissionalmente e de forma organizada, não será considerada uma atividade própria de empresário, não sujeitando o profissional que a exerce ao regime jurídico do Direito Empresarial.

Neste contexto, as profissões intelectuais se distinguem da profissão de empresário devido a uma diversa valoração social. Em outras palavras, o acesso à profissão não é livre, como ocorre com a atividade empresarial, dependendo de formação intelectual muito mais severa e da inscrição do profissional na respectiva corporação; no exercício da profissão intelectual imperam premissas de decoro que impedem, por exemplo, a livre concorrência; e não existe no exercício de uma profissão intelectual a produção em massa, característica da atividade empresarial.

Ocorre, entretanto, que o citado dispositivo contém em sua parte final uma exceção. Trata-se do elemento de empresa. Assim, se o exercício da profissão intelectual constituir elemento de empresa, o sujeito que a exerce será considerado empresário.

A exceção contida na parte final do parágrafo único do Artigo 966 do Código Civil, tem gerado certa controvérsia na doutrina que, muitas vezes, associa o elemento de empresa à pessoalidade no exercício da profissão intelectual, ou mesmo à organização da estrutura necessária para a exploração da atividade. Não me parecem, contudo, acertadas essas opiniões.

Ora, se o elemento de empresa consistisse no exercício da atividade intelectual organizada com profissionalismo e finalidade econômica, o disposto no artigo 966, parágrafo único do Código Civil se faria letra morta, dada a sua absoluta redundância. Isso porque se a atividade intelectual não fosse assim explorada, já estaria excluída do conceito de empresário pela redação do próprio caput do citado artigo.

Talvez a razão da dificuldade na interpretação e conceituação do “elemento de empresa” esteja no fato de que, muito embora tenha sido inspirado no artigo 2.238[1] do Código Civil Italiano, sua versão para o nosso Código Civil sofreu uma supressão que pode ser a causa de sua equivocada interpretação por parte da doutrina. Neste sentido, tinha dado ao parágrafo único do artigo 966 (então artigo 1.027 do Projeto do Código Civil), redação muito parecida com a utilizada pelo Código Civil Italiano: “salvo se o exercício da profissão constituir elemento de atividade organizada em empresa”. No entanto, ao ser aprovado pela Câmara dos Deputados, sofreu uma simplificação com a supressão das palavras “atividade organizada em”, tornando-o mais lacônico e permitindo interpretações que não coadunam com a proposta do citado dispositivo legal.

No Código Civil Italiano, o trabalhador autônomo é disciplinado em capítulo distinto (Capo II – Delle professioni intellettuali) daquele que trata do empresário comercial (Capo I – Dell’impresa in generale), não sendo, portanto, submetido ao regime jurídico do empresário. O Capítulo II do Livro V do Código Civil Italiano disciplina o trabalho autônomo, ou seja, as profissões intelectuais, dispondo de forma detalhada sobre a atuação do profissional, suas relações com o cliente e suas responsabilidades. No entanto, nos termos do citado artigo 2.238, se o exercício da profissão constituir elemento de uma atividade organizada em forma de empresa, serão também aplicáveis as normas relativas a esta.

Conforme Alfredo de Assis Gonçalves Neto (ob. cit., p. 75), a profissão intelectual, no sistema italiano, não tem qualquer vinculação com a matéria relativa à empresa; se ela, entretanto, for exercida como parte de uma atividade empresarial, continuará subornada às regras do capítulo que lhe é próprio, sendo-lhe aplicáveis, então, complementarmente, as disposições referentes à empresa.

Para Francesco Galgano (Diritto commerciale – L’imprenditore. Zanichelli, 1986, p. 31), as normas sobre empresa não se aplicam, porém, aos bens organizados pelo profissional intelectual para o exercício de sua profissão. Mesmo quando os escritórios profissionais apresentam, sob muitos aspectos, semelhanças com a empresa; mesmo que, na prática, essas semelhanças tendam a se ascentuar, na medida em que cresce o espírito mercantil de muitos profissionais intelectuais, e os conceitos de “aviamento”, de “clientela”, de “cessão” do escritório profissional e de “preço de cessão” sejam frequentemente utilizados mesmo nesse campo, resta, porém o fato de que os profissionais intelectuais não são, pelo nosso código civil, empresários e que sua atividade profissional não é legislativamente qualificada como atividade de empresa”.

Na mesma linha, Tulio Ascarelli (Corso di Diritto Commerciale. Giuffrè Editore, 1962, pp. 161-185) adverte que a classificação legal dos que exercem profissões intelectuais entre os trabalhadores autônomos induz, frequentemente, a reconhecer na falta de organização a razão da sua exclusão do âmbito dos empresários. Isto, todavia, me parece em contraste com o artigo 2.238, primeiro parágrafo, que faz referência à aplicação das normas em tema de empresa só quando o exercício da profissão constitua “elemento de uma atividade organizada em forma de empresa”; trata-se, portanto, de uma hipótese distinta daquela da contratação de pessoal e, assim, da objetiva existência de uma organização, que pode até ser relevante e importar em uma certa “despersonalização”, perante a qual podem, na verdade, também propor-se problemas não distantes daqueles que se propõem com relação aos empresários. Não é, pois, uma pretensa constante falta de organização que leva a excluir os que exercem profissões intelectuais do âmbito dos empresários.

Portanto, ao contrário do que muitos “pretensos” doutrinadores e professores afirmam, o elemento de empresa não tem qualquer relação com a organização ou não da atividade intelectual, com o seu exercício ou não de forma profissional, com o número de empregados contratados ou mesmo o seu faturamento. Ser a profissão intelectual “elemento de atividade organizada em empresa”, ou simplesmente, “elemento de empresa”, significa ser parcela dessa atividade e não a atividade em si, isoladamente considerada. É o caso, por exemplo, do médico que agrega a prática da medicina um “SPA”, onde ao paciente se oferece repouso e alimentação; do veterinário que, além do seu oficio, em uma pet shop vende ração para os animais, medicamentos, bem como hospeda os animais na viagem de seus donos.

[1] Art. 2.238. Se l'esercizio della professione costituisce elemento di un'attività organizzata in forma d'impresa, si applicano anche le disposizioni del Titolo II (2082 e seguenti).

Nenhum comentário:

Postar um comentário