Um advogado que já defendeu investigados na Lava Jato e a coordenadora do Núcleo de Combate à Corrupção do MPF debatem decisão do STF de soltar José Dirceu
São Paulo – Sete dias, três prisões revogadas. A série de decisões da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) nas duas últimas semanas acendeu um sinal de alerta na força-tarefa da Operação Lava Jato.
O temor é que outros investigados, que cumprem prisão preventiva e
estariam inclinados a fechar um acordo de delação premiada, vejam na
tendência de voto dos ministros uma brecha para escapar de uma das
principais estratégias da Lava Jato.
A verdade é que não é de hoje que os ministros do Supremo tomam uma
decisão nesses termos. Segundo levantamento da revista Veja desta
semana, em cerca de 60% dos pedidos de habeas corpus de investigados
pela Lava Jato, os membros da mais alta corte do país decidiram pela
soltura dos suspeitos.
O último deles foi em favor do ex-ministro José Dirceu (Casa Civil/Governo Lula).
Os ministros da Segunda Turma do STF consideraram que a manutenção da
prisão preventiva de Dirceu, sem uma condenação em segunda instância,
seria uma ilegal antecipação do cumprimento de pena — em coerência com
entendimento de fevereiro do ano passado do Supremo que a execução de
uma pena deve ocorrer apenas após a conclusão de um julgamento em
segunda instância.
EXAME.com conversou com dois juristas com diferentes visões para entender o que está em jogo na decisão do STF:
A FAVOR DA DECISÃO DE SOLTAR PRESOS DA LAVA JATO
Quem fala: ALBERTO TORON, professor de direito processual penal da Faap. Foi advogado de Ricardo Pessoa, ex-presidente da UTC, e autor do habeas corpus que tirou o executivo da cadeia em 2015.
EXAME.com: O senhor concorda com a tese da segunda turma do STF de
que manter a prisão preventiva de réus da Lava Jato é uma antecipação
da pena?
Não apenas concordo, como falei isso no pedido de habeas corpus que
culminou na soltura dos empresários Ricardo Pessoa, Leo Pinheiro em
abril de 2015. Naquela oportunidade, embora com outra composição, a
Segunda Turma já havia reconhecido isso. E pior: repeliu a possibilidade
de a prisão ser utilizada como um meio de forçar a obtenção de delação
premiada. O ministro Teori Zavascki dizia que isso era uma forma
mediavalesca de se proceder.
As prisões da Lava Jato infundiram na consciência da população a
ideia de que estava se punindo os “ladrões”. Tanto isso é verdade que
quando eles são soltos, as pessoas dizem: “essa gente não vai pagar?”,
como se a soltura do José Dirceu fosse sinônimo de impunidade, não é. A
soltura quer dizer que ele só tem que ser preso após a decisão do
Tribunal Regional Federal. Só isso. Nada mais.
Qual é a diferença entre a decisão do STF sobre o goleiro Bruno, que voltou para a prisão, e o caso de José Dirceu?
Não conheço o caso do goleiro Bruno senão pela imprensa. A primeira
diferença é que eles caíram em turmas diferentes [no STF]. Existe uma
espécie de loteria judiciária. Com exceção do ministro Marco Aurélio, a
Primeira Turma é mais dura, que concorda mais com as prisões. A Segunda,
menos.
Tem uma outra diferença significativa: o goleiro Bruno foi julgado
pelo júri, que já é um órgão colegiado. Por ser um órgão colegiado, a
apelação da decisão é tem espectro menor. Só se anula uma decisão do
júri quando ela for arbitrária. Já quando se trata de uma decisão
emanada de um juiz singular, como o Sérgio Moro, por exemplo, o tribunal
faz um novo julgamento.
O fato dos crimes de corrupção serem considerados graves não justifica a prisão preventiva?
A gravidade do crime por si só não autoriza a prisão de alguém. É
preciso que, além da gravidade, estejam presentes os requisitos da
prisão preventiva. Posso ser acusado de um crime gravíssimo como estupro
e ser inocente. Posso ser acusado de um crime gravíssimo como homicídio
qualificado e ser inocente. A mesma coisa vale para a corrupção. Eu não
presumo a culpa das pessoas. O fato do crime ser grave por si só não
autoriza automaticamente a prisão de alguém. Isso já existiu no Brasil
no Tribunal de Segurança Nacional e no código do processo penal de 1941,
que pasme você, neste particular, foi revogado em 1967 em plena
Ditadura Militar. Não dá para incluir na democracia uma regra fascista.
Acabar com a prisão preventiva coloca em risco a Lava Jato?
É uma bobagem. A Lava Jato continua firme e forte. Lembre-se que o
Mensalão todo foi feito sem qualquer prisão preventiva e redundou em
muitas condenações. A ideia de que a Lava Jato só existe com prisão
preventiva é a maior expressão de um abuso no emprego das prisões
preventivas. A Lava Jato vai continuar existindo, é uma operação
importantíssima, ela expôs para a nação as vísceras de um sistema podre,
de relação promíscua entre empreiteiras e o poder público. Quando se
soltaram os empresários em abril de 2015 se disse a mesma coisa e eu
pergunto para você: de 2015 para cá a Lava Jato acabou? E nem vai acabar
agora.
CONTRA A DECISÃO DE SOLTAR PRESOS DA LAVA JATO
Quem fala: THÁMEA DANELON, procuradora da República e Coordenadora do Núcleo de Combate à Corrupção na Ministério Público Federal
EXAME.com: A senhora concorda com a tese da Segunda Turma do STF
de que manter a prisão preventiva de réus da Lava Jato é uma antecipação
da pena?
Thaméa Danelon: Não. A prisão preventiva, como o próprio nome
diz, é para prevenir algo, proteger alguma coisa: ou o processo, ou a
investigação, ou a própria sociedade. Quando o investigado está
ameaçando uma vítima ou a testemunha, se há indícios de que o réu pode
fugir e, portanto, impedir o cumprimento da lei.
Os casos de corrupção são crimes gravíssimos, que se equiparam ao
crime de homicídio, pois se desviaram milhões de valores que resultaram
em efeitos sociais. Por conta da gravidade desses atos, quem as cometeu
tem que ser segregado da sociedade. Nada justifica a soltura de uma
pessoa que tenha um grau de importância em uma organização criminosa,
que praticou crimes de corrupção gravíssimos.
Não é justo que se espere três, quatro degraus de julgamento — o que
geralmente ocorre após 15, 20 anos — para que se cumpra a pena.
Mas como fica a presunção de inocência, se durante todo o período do processo, o réu fica em regime fechado?
A presunção de inocência significa o seguinte: eventual indenização
contra esse réu não pode ocorrer enquanto não houver um trânsito em
julgado [quando se esgotam todas possibilidades de recurso]. Agora, a
presunção de inocência não pode se confundir com autorização para
impunidade. Não é por que o réu está preso preventivamente que ele é
culpado, mas também não significa que ele é inocente. Se ele fosse
inocente, ele não seria preso preventivamente. Se por um lado o réu tem
direito de presumir-se inocente, por outro lado, a sociedade tem o
direito de que haja um combate efetivo à criminalidade.
Existem outras medidas cautelares, como o uso da tornozeleira
eletrônica, para além da prisão preventiva. Essas outras medidas já não
cumprem esse papel para os casos de corrupção?
Depende do caso. Muita gente não consegue ver a consequência dos
crimes do colarinho branco. Uma coisa é o homicídio: o goleiro Bruno
matou, tem a vítima. É um crime gravíssimo. Agora, com um ato de
corrupção, você não consegue ver de imediato o prejuízo. Mas a gente tem
que associar. Veja a situação caótica que está o Rio de Janeiro. Culpa
da corrupção.
O grande criminoso de colarinho branco — no qual, no meu ponto de
vista, o condenado José Dirceu se encaixa — é muito mais perigoso do que
um estuprador. Mesmo preso, ele continuou recebendo propina. Pessoas
desse nível tem que ser afastadas da sociedade.
Eu defendo a prisão e asfixia econômica desses altos criminosos em
que o estilo de vida é a prática de corrupção, que lesa diretamente
aqueles que mais precisam do poder estatal. A classe média paga a
corrupção com o dinheiro. Não tem uma saúde pública adequada? Paga-se
plano saúde. Agora, e o pobre? Ele morre. Ele paga com a vida.
Uma das principais críticas ao uso da prisão preventiva é de que
seria um instrumento para forçar a delação premiada. Isso é verdade?
Não, não é verdade. Mais de 70% dos réus que colaboraram estavam em
liberdade e, em 100% dos casos, eles que procuraram o Ministério Público
querendo fazer delação. A colaboração é um instrumento de extrema
importância nos crimes de colarinho branco. A corrupção é um crime
cometido entre quatro paredes, às escuras, tem o pacto de silêncio. É
muito importante que a pessoa fale, que traga provas e indique caminhos
de prova. Senão, fica muito difícil investigar. E a criminalidade vai
continuar ganhando.
Se prevalecer a tese aprovada pela maioria da Segunda Turma de que
a prisão preventiva antecipa a pena e, portanto, deve ser revogada,
quais seriam os efeitos para a Lava Jato?
São terríveis. As pessoas colaboram com medo de ficarem muito tempo
na cadeia. Tudo isso começou com o Mensalão, em que os empresários como o
Marcos Valério foram condenados a penas altíssimas. Ninguém quer ser o
Marcos Valério. Vendo que o sistema funciona, para diminuir a pena, eles
vão falar.
Eu não acredito que isso vai acontecer por que essa é uma decisão
muito peculiar desses três ministros (Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski
e Toffoli) – que tem muitas semelhanças entre si. Sempre quando são
poderosos, eles soltam. Mas se isso acontecer, vai colocar a operação em
risco, por que, sabendo que poderão ser soltos, eles vão deixar de
colaborar.
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