”Nenhuma perda de vida é aceitável” é o lema de programa sueco - levado a sério - que quer baixar a zero mortes envolvendo veículos. No Brasil, governo pode atrasar airbag e ABS
Carro em crash test: veículos do Brasil com airbags recebem mais estrelas que mesmas versões sem as bolsas infláveis
São Paulo – “Não há justificativa moral para nenhuma morte no trânsito”. A frase é de um vídeo institucional
sueco sobre o programa Visão Zero, desde 1997 vigente no país
escandinavo. O lema desta estratégia – que orienta as ações da indústria
de inovação e de automóveis da Suécia, assim como do governo – é que “nenhuma perda de vida é aceitável” (“no loss of life is acceptable”, em inglês).
É de se supor que a seriedade com que o programa foi levado pela nação
nórdica – e posteriormente replicado pela maior parte da União Europeia – faria corar o governo brasileiro diante dos últimos movimentos políticos observados por aqui.
Na quarta, o ministro da Fazenda, Guido Mantega,
disse que pode ser postergada a obrigatoriedade de que 100% dos
veículos nacionais saiam da fábrica com airbag duplo e freios ABS, itens
de comprovada eficácia para salvar vidas no trânsito (veja benefícios
ao final).
Em 2011, 43 mil pessoas perderam a vida em acidentes nas vias do Brasil, segundo o Ministério da Saúde.
“Há uma preocupação com emprego, e uma outra preocupação é com o preço, que vai subir“, disse o ministro ao Jornal Nacional, ontem. A resposta final sairá na próxima 3ª feira.
O governo em parte age pelo lobby declarado de sindicatos que temem demissões
– pelo menos três populares modelos teriam fabricação suspensa por
terem concepção tão antiga que não merecem adaptações às novas normas
(Uno Mille, Gol G4 e Kombi) – e em parte age com medo que o aumento de preços, calculado entre R$ 1 mil e R$ 1,5 mil por automóvel, pressione a inflação em 2014, ano eleitoral.
Diante disso, o programa sueco continua com potencial de causar constrangimentos.
“Alguns argumentam que esta alta tolerância (com as mortes) é o preço
que temos que pagar pela mobilidade. Nós discordamos”, diz o mesmo vídeo
citado ao início desta reportagem. Substituída a palavra “mobilidade”
por “controle da economia”, a crítica poderia ter destinatário certo.
Segundo o Mapa da Violência 2013, estudo da OCDE,
grupo que reúne nações ricas, mostra que países que adotaram seriamente
esta “visão zero” de mortes no trânsito diminuíram em 50% o número de
vítimas desde 1970, mesmo com a frota tendo aumentado fortemente no
período.
No Brasil, em 1980, foram 20,2 mil mortes. Em 2011, como já mencionado, mais que o dobro disso.
A decisão do governo brasileiro - alheia aos benefícios de equipamentos
tidos como exigências mínimas em países desenvolvidos - é ainda mais
impressionante porque a resolução do Conselho Nacional de Trânsito
(Contran), que regulamentou a medida, é de 2009.
Ela permitiu às montadoras nacionais que escalonassem a produção com esses itens de 30%, em 2012, para 60%, em 2013, até os supostos 100% do ano que vem.
Todas as fabricantes afirmam não ter influenciado no recuo.
Independentemente disso, o fato é que os parques industriais já estão
prontos para que todos os modelos saiam com airbags e ABS de série,
alegam elas próprias. Se a resolução for postergada, no entanto, o mais
provável é que as empresas reavaliem as vantagens econômicas de
adotá-los em toda linha.
Benefícios
A NHTSA, agência que cuida da segurança no trânsito nos Estados Unidos, calculou em 2009
que 54% das vidas em acidentes poderiam ser salvas com a adoção
conjunta de airbags frontais e cintos de segurança pelos motoristas,
embora o cinto por si só já apresente eficácia de 48%.
Um outro levantamento do Centro de Experimentação e Segurança Viária
(Cesvi), de 2008, afirma que 3,4 mil vidas poderiam ter sido salvas no
Brasil entre 2001 e 2007 se todos carros tivessem airbags.
Enquanto as bolsas infláveis atuam quando o pior já aconteceu, o ABS impede as rodas de travarem durante freadas bruscas.
“Você vê colisões em rodovias onde a pessoa teve as rodas bloqueadas em
uma trajetória muito grande e veio a colidir. Se tivesse ABS, isso
poderia ser evitado”, afirma Gerson Burin, analista técnico do Cesvi.
Na avaliação do centro de pesquisa de segurança automotiva, qualquer
medida que venha na contramão de prover mais segurança aos veículos
nacionais – já chamados de “mortais” em reportagens internacionais - é um retrocesso.
Ter airbags frontais e ABS nem deveria ser algo a se gabar: na Europa, carros baratos já saem da fábrica com airbags laterais,
enquanto nos Estados Unidos, não se faz nenhum sem controle eletrônico
de estabilidade, um dos itens de maior importância para evitar colisões.
Mentalidade
Tudo considerado, talvez a maior lição da Suécia nas questões viárias
seja relacionada à mentalidade com que se tratam problemas e se buscam
soluções.
Para mostrar isso, vale lembrar uma situação clássica e repetitiva: a cada feriado em que ocorrem dezenas de mortes nas estradas brasileiras, seguem-se uma série de entrevistas com policiais nas rádios e TVs do país.
Na maioria das vezes, os agentes culpam a imprudência dos motoristas pelo alto número de tragédias.
“Os sistemas de transporte tradicionalmente colocam a responsabilidade pela segurança nos usuários. A Iniciativa Visão Zero coloca esta responsabilidade no projeto do sistema”.
A frase acima é, mais uma vez, do programa sueco. Talvez esteja na hora
do governo brasileiro também almejar – ao menos como princípio - que as
mortes envolvendo automóveis se limitem a zero.
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