Newton Silveira
Palestra proferida na sede da ASPI - Associação Paulista da Propriedade Intelectual, em 9/3/17.
quarta-feira, 22 de março de 2017
"Art. 19. Os advogados integrantes da mesma sociedade profissional, ou reunidos em caráter permanente para cooperação recíproca, não podem representar, em juízo ou fora dele, clientes com interesses opostos."
A propriedade
industrial se insere em um ramo mais amplo do Direito, denominado
propriedade intelectual. Esta, por sua vez, inclui-se
tradicionalmente entre os direitos reais, dos quais o mais
abrangente é o direito de propriedade, que se exerce sobre bens
imateriais.
Essa colocação não é
pacífica, pois muitos especialistas do direito autoral o
incluem entre os direitos de personalidade, como o direito à
imagem e à privacidade, e não entre os direitos reais.
Porém,
mesmo que se considere que, pelo aspecto patrimonial, o direito
de autor também seja uma forma de propriedade sobre o fruto da
criação intelectual, subsiste outra vertente dos direitos de
autor, os denominados direitos morais de autor, que, sem dúvida,
se classificam como direitos de personalidade. Assim são o
direito à integridade da obra, o direito de inédito e o direito
de ligar o nome à obra ou de tirá-la de circulação, direitos esses
que competem ao autor como pessoa e são de caráter inalienável,
imprescritível e irrenunciável.
Essa interferência
com os direitos de personalidade não se restringe aos direitos
de autor, mas ocorre também com os direitos do inventor, seja
quanto ao direito de inédito (o inventor não pode ser obrigado a
revelar sua invenção), seja quanto ao direito de ter seu nome de
criador mencionado na patente.
Mesmo as marcas e o
nome comercial ou de empresa, que o Direito trata como uma forma de
propriedade, adentram os direitos de personalidade quando
formados por nome ou imagem de pessoa, ou por obras artísticas ou
seus títulos.
Assim, não podemos
encarar a propriedade intelectual exclusivamente sob o ângulo
dos direitos reais sobre bens imateriais. Por outro lado, tais bens
imateriais são objeto de negócios jurídicos de alienação ou
licença de exploração, matéria dos direitos obrigacionais.
Nesse ramo do Direito, também se incluem as obrigações
decorrentes de atos ilícitos de violação de segredo industrial
ou outros atos de concorrência desleal.
Dessa forma, a
propriedade intelectual se acha presente nas três categorias
dos direitos subjetivos: os direitos reais, os direitos de
personalidade e os direitos obrigacionais.
Caso se restrinja,
entretanto, apenas à vertente patrimonial desses direitos, a
propriedade intelectual irá consistir em direitos reais sobre
bens imateriais.
Entre os bens
imateriais, sobrelevam os que são fruto da criação intelectual:
os direitos de autor e os direitos do inventor, ou do autor de
criações industriais, na expressão adotada pela Constituição de 1988.
O reconhecimento
legislativo relativo aos direitos sobre as criações
intelectuais é fruto da Revolução Francesa, de 1789. No mesmo ano
em que foi promulgada a Lei Chapelier, em 1791, que extinguiu os
privilégios das corporações de ofícios e consagrou a
liberdade de indústria, a Assembleia revolucionária votou leis
de proteção aos autores e aos inventores.
Na discussão dos
projetos, argumentava-se ser a propriedade sobre o fruto do
trabalho intelectual a mais sagrada das propriedades, pois não
resultava da ocupação (como a propriedade sobre a terra) e o
autor trazia ao mundo uma obra antes inexistente.
Note-se, assim, que
essa categoria de bens foi instituída com caráter nitidamente
concorrencial, para substituir o sistema fechado das
corporações de ofícios.
Os direitos de autor e
os direitos do inventor tomaram rumos diversos: os direitos
autorais passaram a fazer parte do direito civil, sendo que sua
tutela não depende de formalidades de registro ou de pagamento
de taxas, e sua duração é longa, independentemente de exploração
da obra; os direitos sobre as criações industriais fazem parte do
direito comercial, sendo que sua tutela depende da concessão de um
título pelo Estado (a patente), estão sujeitos a taxas de
manutenção, seu prazo de proteção é mais curto e a lei
estabelece sanções para a não exploração, como a licença
compulsória e a caducidade por falta de uso. A Lei de Propriedade Industrial brasileira,
em vigor desde maio de 1996, estende essas sanções para o caso de uso
abusivo das patentes ou abuso de poder econômico.
Mais uma vez, ressalta-se o caráter concorrencial desses bens.
Alguns tipos de criação, como o design, o software,
os circuitos integrados e as variedades vegetais, passaram a
ser objeto de leis especiais, que lhes conferem um tratamento sui generis e que se preocupam com salvaguardas que impeçam sua exploração de forma abusiva.
O sucesso do sistema
de proteção à propriedade industrial, mediante a concessão de
um título de exclusividade conferido pelo Estado, fez com que
ele se estendesse às marcas por meio do registro. Criou-se, assim,
um novo bem imaterial, objeto dessa forma especial de
propriedade, embora essa tutela não seja, no caso, conferida em
reconhecimento a um ato de criação, mas para o fim de reprimir a
concorrência desleal. Esse direito compete ao empresário, não
ao autor. Dessa forma, as marcas passaram a integrar o quadro da
propriedade intelectual, ao lado dos direitos autorais e dos
direitos sobre as criações industriais. Os direitos sobre os
sinais distintivos e sobre as criações industriais compõem a
propriedade industrial. No mundo moderno, porém, as obras
intelectuais são também objeto do tráfico comercial, por meio das
indústrias editorial, gráfica, fonográfica e de empresas de
comunicações e diversões, sujeitando-se, em consequência, às
normas reguladoras da concorrência.
Assim, se os usuários
do sistema eram, inicialmente, os autores e os inventores, hoje o
usuário principal é a empresa, que exige do Estado e dos
organismos internacionais uma proteção mais eficiente para sua
propriedade intelectual, que passa a representar valor
substancial em seus ativos. Outro usuário moderno do sistema são
os institutos de pesquisa e as universidades, que vislumbram
obter do sistema rendimentos para custear suas atividades. No
Brasil, essas instituições ainda não estão aparelhadas para
proteger com eficiência suas criações e até mesmo suas marcas,
quando se voltam ao mercado.
É natural que assim
seja, pois o caráter nitidamente empresarial e concorrencial
desse ramo do Direito parece inadequado ao meio científico e,
principalmente, ao ambiente universitário. De agora em
diante, um professor universitário que queira divulgar,
perante os meios acadêmicos, o resultado de suas pesquisas terá
de pensar em solicitar uma patente, antes que um colega,
conterrâneo ou estrangeiro, faça-o, em prejuízo de sua
instituição. Essa instituição, por sua vez, terá de investir
recursos para requerer patentes para as invenções de seus
pesquisadores e, principalmente, criar serviços para divulgar
internamente o novo espírito mercantilista que adentra as
universidades.
Esses recursos são
necessários, ainda, para solicitar essas patentes em outros
países, se se tratar de uma invenção relevante, caso contrário
sua exploração por terceiros nesses países será livre, sem
nenhuma compensação pecuniária para o inventor e para a
instituição.
Dessa forma, as
universidades e os centros de pesquisas, particulares ou
públicos, passam também a ser agentes da globalização da
economia, mesmo que contra o espírito conservador da tradição
universitária.
Em 31 de dezembro de 1994, entrou em vigor, no Brasil, o decreto 1.355, que promulga o chamado acordo TRIPs, instrumento da globalização da propriedade industrial.
A lei brasileira de
propriedade industrial – lei 9.279, de 1996 –, incorpora as
normas do acordo internacional a que o Brasil aderiu. Todas as
formas de propriedade intelectual, incluindo os chamados
setores emergentes, passam a receber tutela em forma de
propriedade.
Esse novo espírito foi objeto de análise em livro editado em 1994, de autoria de Fred Warshofsky, sob o título The patent wars: the battle to own the world’s technology.
A propriedade intelectual se tornou a nova riqueza das nações, portanto é preciso adaptar-se aos novos tempos.
De um lado, como
usuários do sistema, os centros de pesquisas necessitam tomar
consciência da competição e organizar-se internamente para
esse fim. Do outro lado, estão os órgãos administrativos de
concessão de direitos de propriedade intelectual: o INPI e os
diversos órgãos descentralizados de registro de direitos de
autor.
É preciso que o
governo federal se conscientize de que o INPI não é mais um
simples órgão administrativo de registros cartoriais, mas um
instrumento de política econômica nos novos tempos. Um ponto
positivo é o fato de o INPI ter aproximado-se funcionalmente do
Cade para a repressão do abuso do poder econômico exercido por
meio de direitos de propriedade industrial. Mas o INPI necessita
de urgente apoio do governo federal para que possa exercer
eficientemente sua relevante função social e econômica, a
começar pela instalação de sua sede legal em Brasília.
No entanto, a propriedade intelectual não se restringe à propriedade industrial. O Brasil possui um sistema sui generis
de registro descentralizado de direitos de autor, com exceção
dos direitos autorais sobre programas de computador, que foram
delegados ao INPI pelo Conselho Nacional de Direito Autoral.
As demais facetas do
direito de autor, como os livros, as obras de belas-artes, o cinema, a
arquitetura, acham-se dispersas pelas mais variadas
instituições, diferentemente do que ocorre em outros países
que possuem um Copyright Office ou uma Dirección Nacional de Derecho de Autor.
É fácil imaginar os abusos e as confusões que decorrem desse sistema retrógrado.
A lei 9.279/96, em seu
art. 241, de forma mais didática que imperativa, autoriza "o
Poder Judiciário [...] a criar juízos especiais para dirimir
questões relativas à propriedade intelectual". Embora não se
deva abusar da criação de juízos especiais, é certo que o sistema
emperrará se, no momento de dar eficácia ao direito, ficarem as
partes sujeitas aos riscos e às demoras judiciais.
O Brasil se obrigou,
pelo acordo TRIPs, a garantir a eficácia dos direitos de
propriedade intelectual, devendo, por isso, modernizar os
órgãos administrativos e judiciários envolvidos.
Do lado privado, para
completar o tripé, existe a figura do agente da propriedade
industrial. Da mesma forma que, por princípio constitucional, o
advogado é parte essencial para a aplicação da Justiça, o agente
da propriedade industrial é elemento essencial para o
funcionamento do sistema de propriedade
industrial/intelectual no Brasil.
É inútil o INPI anunciar pela Voz do Brasil
(outro resquício do entulho burocrático) que está à
disposição dos usuários para atendê-los sem a intermediação do
agente da propriedade industrial.
Os que experimentaram
fazê-lo conhecem as consequências.
O agente é um
profissional que representa a parte perante o INPI e que deverá
ter conhecimento jurídico e técnico. É uma atividade
multidisciplinar, mas que se insere no âmbito da concorrência,
que tisna todo o sistema da propriedade intelectual.
É verdade que
existem muitos profissionais atuando nessa área sem a
qualificação técnico-jurídica necessária. Em minha opinião de
advogado e professor de direito, o exercício dessa atividade
deveria ser restrito aos advogados, assessorados por peritos
engenheiros, quando uma ação tem por objeto uma patente.
Durante a vigência do
Código da Propriedade Industrial de 1971, a atividade de
representação perante o INPI esteve aberta a todos. À época, essa
abertura foi providencial, pois a atividade estava restrita a
certos grupos corporativos que, como verdadeiros cartórios,
monopolizavam o exercício da profissão.
Outro cunho da Lei de
1971 foi seu enfoque tendenciosamente nacionalista, o que
trouxe como efeito a polarização dos usuários do sistema. As
empresas estrangeiras se concentraram junto a um pequeno número
de escritórios que defendiam seus interesses, muitas vezes
legítimos. As empresas nacionais, sem pensar nos desafios da
globalização, passaram a se servir de pequenos agentes,
escolhidos exclusivamente pelo critério do menor preço
(critério esse utilizado pelos órgãos públicos de pesquisas,
por meio de concorrência).
Embora o sistema
internacional de propriedade industrial tenha adaptado-se aos
novos desafios, esse terceiro pé do tripé permanece tão
antiquado e conservador como se estivéssemos no início do
século passado.
Obviamente, mesmo que
se modernize o INPI, que se centralize o registro de direitos
autorais e o Poder Judiciário crie juizados especiais, o sistema
não pode funcionar se a representação das partes perante o INPI
não tiver caráter concorrencial. Necessita-se, nessa área, de uma
Lei Chapelier, que acabe com as corporações de ofícios.
A regra necessária a
ser instituída é que um agente de propriedade industrial não
possa atender empresas concorrentes. Parece óbvio, mas não é
assim.
O Ato Normativo INPI 142, de 25 de agosto de 1998, que instituiu o Código de Conduta Profissional do Agente da Propriedade Industrial1, estabelece em seu item 9:
O Agente da Propriedade Industrial ou os agentes integrantes da mesma sociedade profissional de Agentes da Propriedade Industrial, ou reunidos em caráter permanente para cooperação recíproca, não devem representar junto ao INPI, em um processo específico, simultaneamente, clientes em conflito de interesse.
Quando a Associação
Brasileira dos Agentes da Propriedade Industrial (Abapi) preparou o
anteprojeto do Código de Conduta, não havia o trecho acima
grifado. O texto rezava que "o Agente [...] ou os Agentes [...] não
devem representar junto ao INPI clientes em conflito de
interesses".
Inexplicavelmente,
no Ato Normativo foi acrescentado: "em um processo
específico, simultaneamente". Esse acréscimo tornou
absolutamente inócua a proibição da representação em
conflito de interesses.
Ao que consta, não houve nenhum protesto da Abapi contra esse acréscimo.
A propósito,
lembro-me de um comentário do velho professor Canuto Mendes de
Almeida, que era ministro do governo Getúlio Vargas quando da
edição do Código da Propriedade Industrial de 1945. Ele me disse:
"Veja na parte que cuida da procuração de estrangeiro que houve uma
troca de palavras no corredor do Catete". Examinando o texto do decreto-lei 7.903/45,
encontrei o art. 214, que estabelecia o seguinte: "a pessoa
domiciliada no estrangeiro, para depositar marca ou patente,
deverá, desde logo, constituir procurador hábil, domiciliado no
país, que a represente perante o Departamento Nacional da
Propriedade Industrial".
O parágrafo único desse artigo, no entanto, saiu com a seguinte redação: "O mandato, que poderá
conter poderes para receber primeiras citações, será arquivado
no Departamento, na forma do disposto no artigo precedente".
Evidentemente, trocou-se deverá por poderá,
isso foi devidamente corrigido nas leis subsequentes, pois o
texto daquele parágrafo tal como foi publicado tornou-se, também,
absolutamente inócuo.
A concentração de
representação de partes em conflito de interesses não prejudica
somente as partes representadas, que, normalmente, até
desconhecem o fato, porque os órgãos de classe tentam coibir o disclosure, sob a alegação de que o envio de comunicações ao mercado é falta de ética, o que é muito cômodo para manter o status quo.
Essa concentração, na verdade, inibe o desenvolvimento de
agentes de propriedade industrial concorrentes que atendam a
partes que competem no mercado.
Em suma, impede o
desenvolvimento do setor de serviços, que constitui um
elemento essencial para que todo o sistema de propriedade
industrial brasileiro funcione.
Nem se diga que essa é
uma questão que deve ser resolvida no mercado, mediante a
competição entre as empresas de serviços concorrentes. A
concentração da atividade em poucas mãos, mediante o artifício
de atendimento em conflito de interesses, fere as normas da
concorrência e impede que o sistema deslanche para a
modernidade.
O INPI em sua resolução 4/2013 dispôs em seu art. 9º:
"Art. 9º O agente da propriedade industrial ou os agentes integrantes da mesma sociedade profissional de agentes da propriedade industrial, ou reunidos em caráter permanente para cooperação recíproca, não devem representar junto ao INPI, em um processo específico, simultaneamente, clientes em conflito de interesse."
Já a ABAPI em seu Código de Ética de 2013 preferiu omitir-se acerca do tema.
"Artigo 5º - Constitui infração a este Código os seguintes procedimentos:[...](ii) atender clientes em conflito de interesses; e"
______________
*Newton Silveira
é advogado, mestre em Direito Civil, doutor em Direito Comercial e
professor senior na pós-graduação da Faculdade de Direito da USP. Sócio
do escritório Newton Silveira, Wilson Silveira e Associados - Advogados.
http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI255996,71043-A+etica+dos+advogados+e+agentes+da+propriedade+industrial+e+o
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