Mary Del Priore é historiadora, professora universitária e autora de obras como História das Mulheres no Brasil (ed. Contexto), vencedor dos prêmios Jabuti e Casa Grande e Senzala, e Histórias e Conversas de Mulher (ed. Planeta), em que acompanha avanços femininos desde o século 18.
Para a historiadora, as mulheres brasileiras do
último século conquistaram o direito de votar, tomar anticoncepcionais,
usar biquíni e a independência profissional. Mas ainda hoje são vítimas
de seu próprio machismo.
Muitas mulheres "não conseguem se ver fora da órbita do homem" e são dependentes da aprovação e do desejo masculino, opina ela.
BBC Brasil - Você vê traços de machismo ou preconceito em seus ambientes profissional e pessoal?
Mary Del Priore - No ambiente
profissional, não vivi nenhum problema, porque desde os anos 1980 o
setor acadêmico sofreu grande "feminilização". As mulheres formam um
bloco consistente nas disciplinas (universitárias) mais diversas.
"O fato de que elas busquem se realizar resgatando o trabalho doméstico, manual ou artesanal é uma prova de que a singularidade feminina tem muito a oferecer. A mulher pode, sim, realizar-se através do trabalho doméstico e não necessariamente no público"
Mas, na sociedade, acho que o machismo no Brasil
se deve muito às mulheres. São elas as transmissoras dos piores
preconceitos. Na vida pública, elas têm um comportamento liberal,
competitivo e aparentemente tolerante. Mas em casa, na vida privada,
muitas não gostam que o marido lave a louça; se o filho leva um fora da
namorada, a culpa é da menina; e ela própria gosta de ser chamada de
tudo o que é comestível, como gostosa e docinho, compra revistas
femininas que prometem emagrecimento rápido e formas de conquistar todos
os homens do quarteirão.
O que mais vemos, sobretudo nas classes menos educadas, é o machismo das nossas mulheres.
BBC Brasil - Mas muitas até querem que
os maridos ajudem em casa, mas será que essas coisas do dia a dia acabam
virando motivos de brigas justamente por conta do machismo arraigado? E
também há mulheres estudadas, ambiciosas e fortes - mas também
vaidosas, que ao mesmo tempo querem se sentir desejadas por um
parceiro/a que as respeite. Isso é uma conquista delas, não?
Del Priore - Ambas as questões
não podem ter respostas generalizantes. Mais e mais, há maridos
interessados na gerência da vida privada e na educação dos filhos.
Quantos homens não vemos empurrando carrinhos de bebê, fazendo cursos de
preparação de parto junto com a futura mamãe ou no supermercado? Tudo
depende do nível educacional de ambos os parceiros. Quanto mais
informação e mais educação, mais transparente e igualitária é a relação.
Quanto às mulheres emancipadas, penso que
preferem estar sós do que mal acompanhadas. Chega de querer "ter um
homem só para chamar de seu". Elas estão mais seletivas e não desejam um
parceiro que queira substituir a mãe por uma esposa.
BBC Brasil - Como a mulher mudou – e o que permanece igual – no último século?
"Na vida privada, muitas se revelam não só machistas mas racistas e homofóbicas. Muitas não gostam que o marido lave a louça; se o filho leva um fora da namorada a culpa é da menina, ela própria gosta de ser chamada de tudo o que é comestível, como gostosa e docinho, compra revistas femininas que prometem emagrecimento rápido e formas de conquistar todos os homens do quarteirão"
Del Priore - Temos uma grande
ruptura nos anos 60 e 70 no Brasil, que reproduz as rupturas
internacionais, com a chegada da pílula anticoncepcional. As mulheres
começaram a ocupar postos nos diversos níveis da sociedade, a ganhar
liberdade sexual e financeira. Ela passa atuar como propulsora de
grandes mudanças. Quebra-se o paradigma entre a mulher da casa e a
mulher da rua.
(Mas) a mulher continua se vendo através do
olhar do homem. Ela quer ser essa isca apetitosa e acaba reproduzindo
alguns comportamentos das suas avós. Basta olhar algumas revistas
femininas hoje. Salvo algumas transformações, a impressão é de que a
gente está lendo as revistas da época das nossas avós.
A mulher não consegue se ver fora da órbita do
homem, diferentemente de algumas mulheres europeias, que são muito
emancipadas. O que ela quer é continuar sendo uma presa desejada.
A (antropóloga) Mirian Goldenberg diz que a
mulher brasileira continua correndo atrás do casamento como uma forma de
realização pessoal. No topo da agenda dela não está se realizar
profissionalmente, fazer o que gosta, viajar, conhecer o mundo – está
encontrar um par e botar uma aliança no dedo. Mesmo que o casamento dure
uma semana.
Quais as amarras das mulheres atuais?
Del Priore - O machismo é uma
das questões. Outra, que talvez explique a inatividade da mulher frente a
esse padrão, é que, com a entrada num mercado de trabalho tão
competitivo, com tantas crises econômicas e uma classe média achatada, a
luta pela sobrevivência se impõe sobre qualquer outro projeto.
Essa falta de tempo para respirar, o fato de ter
que bancar filhos ou netos, isso talvez não dê à mulher tempo para se
conscientizar e se erguer acima do individualismo – outra tônica do
nosso tempo – e pensar no coletivo.
BBC Brasil - Ao mesmo tempo em que a
mulher avança no mercado de trabalho, algumas também têm perdido a
vergonha de parar de trabalhar para cuidar dos filhos; ou resgatado,
como hobbies ou profissão, antigas "tarefas de mulher", como tricô,
cozinha, artes manuais. Desse ponto de vista, existe um poder maior de
escolha das mulheres?
Del Priore- Sempre apostei que
as mulheres não deveriam buscar ser "um homem de saias", mas apostar em
sua diferença e singularidade. As marcas do gênero, segundo sociólogos,
são a criatividade, a diplomacia, capacidade de dialogar, etc. O fato de
que elas busquem se realizar resgatando o trabalho doméstico, manual ou
artesanal é uma prova de que a singularidade feminina tem muito a
oferecer.
A mulher pode, sim, realizar-se através do
trabalho doméstico e não necessariamente no público. Desse ponto de
vista elas só estariam dando continuidade a uma longa tradição, discreta
e oculta, que é a independência adquirida por meio de atividades
desenvolvidas no lar. Nossas avós, quando trabalhadoras domésticas, já
conheceram essa situação. A tecnologia só nos ajuda a torná-lo mais
eficiente.
BBC Brasil - Que papel a educação teve na mulher que você é hoje?
"Hoje o grande desafio, em qualquer idade, é o equilíbrio interior, estar bem consigo mesma. Quando começamos a envelhecer – o que é o meu caso, aos 61 anos –, é preciso olhar isso com coragem, ver isso como um investimento positivo"
Del Priore - Tive uma
trajetória peculiar. Resolvi fazer universidade (aos 28 anos) quando já
era mãe de três filhos. A maturidade me ajudou muito a progredir. Tive a
sorte de ter na PUC-RJ e na USP um ambiente muito receptivo, porque era
um momento em que a universidade estava largando aquela camisa de força
marxista e se abrindo para estudos de cultura e sociedade, que me
interessavam.
BBC Brasil - Quais os principais desafios que você enfrenta como mulher?
Del Priore - Hoje o grande
desafio, em qualquer idade, é o equilíbrio interior, estar bem consigo
mesma. Quando começamos a envelhecer – o que é o meu caso, aos 61 anos
–, é preciso olhar isso com coragem, ver isso como um investimento
positivo. E ter tempo para a família, para as pessoas em volta da gente.
Quando era mais jovem, eu me preocupava muito
com grandes projetos. Hoje me preocupo com o pequeno – acho que é por aí
que você muda a realidade. É no dia a dia, na maneira como você trata
as pessoas à sua volta, no respeito que você tem pelo seu bairro. Não
temos condições de abraçar o mundo. Através do micro, a gente consegue
aos poucos transformar o macro.
Essa entrevista faz parte da série "100
Mulheres - Vozes de Meio Mundo". A série, publicada globalmente pela
BBC, trata dos desafios da mulher contemporânea.
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