Esta coluna é em homenagem à fundamentação do direito. Portanto, esta
coluna é uma ode aos magistrados que fundamentam as decisões de acordo
com o direito. Que decidem por princípios e não por políticas ou
opiniões morais.
O exemplo de sala: o genro que mata o sogro e quer receber sua meação
Na sala de aula na semana passada, apresentei um caso para discussão,
versando sobre o genro que mata o sogro e depois reivindica, em juízo, a
sua meação da herança. No caso concreto, em primeiro grau o genro
venceu a demanda; em apelação, perdeu por maioria de votos. Todos os
alunos acertaram qual seria a decisão correta. Mas a maioria acertou
apenas de modo intuitivo, teleológico, com raciocínios tipo “não é justo
ou correto que ele receba a sua metade...”. Ou, “é imoral que receba a
meação”. Também perguntei ao Chico, porteiro da Universidade, que me deu
a mesma resposta. Mas a minha pergunta aos alunos foi: qual é a
resposta jurídica[1] para o caso e não a opinião pessoal sobre o problema. Ou seja, não me venham com chorumelas.
A decisão do juiz paulista
Por que estou contando isso? Para falar da decisão de um juiz de direito da comarca de Franca (ler aqui),
que concedeu liberdade provisória para 21 pessoas, acusadas de integrar
uma quadrilha de falsificação de agrotóxicos (operação lavoura limpa),
sob o argumento — político e moral — de que não há como justificar a
manutenção das prisões em um país em que os réus da operação "lava jato"
estão em casa. De acordo com a decisão publicada dia 12 de maio
último,
“em um país onde os
integrantes de uma organização criminosa que roubou bilhões de reais de
uma empresa patrimônio nacional [Petrobras] estão em casa por decisão do
STF, não tenho como justificar a manutenção da prisão do réu neste
processo, que proporcionalmente causou um mal menor à sociedade, embora
também muito grave”.
Os 21 réus foram presos em dezembro de 2014, a
partir de operação deflagrada pela Polícia Civil e pelo MP. A quadrilha
vendia agrotóxicos falsificados para sete estados, principalmente nas
regiões norte de São Paulo e sul de Minas Gerais, e faturava até R$ 10
milhões por mês com a venda dos produtos ilegais. Foram centenas de
agricultores prejudicados. Em sua decisão, o juiz Wagner Carvalho Lima
assinalou que a comarca não tem tornozeleiras eletrônicas à disposição.
Por isso, ele impôs que os acusados não poderão sair da região de
Franca.
A opinião do porteiro da Unisinos sobre o caso decidido pelo juiz
Bingo. Também perguntei para o mesmo porteiro se era justo que os réus
da operação lavoura limpa não tivessem tratamento igual aos da "lava
jato" e ele respondeu: “— Ora, professor, não seria justo que os ladrões
de agrotóxico, que são peixes menores, ficassem presos...”.
“Só
que não, seu Chico”. Eis o problema. O direito tem especificidades. Se
uma lei — e o exemplo, ao que lembro, é de Paulo de Barros Carvalho —
diz que três pessoas disputarão uma cadeira no Senado, nenhum jurista
pensará que haverá uma peleia pelo móvel de uma das Casas do Parlamento.
Mas talvez o marceneiro, sim. Por isso é que as respostas de um e de
outro devem ser diferentes. Por vezes até “fecham”. Por vias tortas, um
relógio estragado também acerta a hora duas vezes por dia.
O que é, afinal, decidir?
Decisões judiciais não são teleológicas. E não são frutos de escolha,
como tenho dito à saciedade em várias colunas e livros (em especial Verdade e Consenso).
Juiz deve decidir por princípios e segundo o Direito. E o Direito não é
moral, não é sociologia, não é opinião pessoal e tampouco é o que o
Chico-porteiro pensa. Direito é um conceito interpretativo e é aquilo
que é emanado pelas instituições jurídicas, sendo que as questões a ele
relativas encontram, necessariamente, respostas nas leis, nos princípios
constitucionais, nos regulamentos e nos precedentes que tenham DNA
constitucional, e não na vontade individual do aplicador. Ou seja, ele
possui, sim, elementos (fortes) decorrentes de análises sociológicas,
morais, etc. Só que estas, depois que o direito está posto, não podem
vir a corrigi-lo.
Indo no ponto: A indignação pessoal do
magistrado não é “razão de decidir”. Seu protesto não pode virar uma
impostura e conspurcar o direito. Decidir é um dever e não uma opção ou escolha: o direito não aconselha meramente os juízes e outras autoridades sobre as decisões que devem (ought to) tomar; determina que eles têm um dever (have a duty to) de reconhecer e fazer vigorar certos padrões, como diz Dworkin em seu Taking Rights Serioulsy.
Dito
de outro modo: pode até estar correta a soltura dos réus da operação
lavoura limpa. Assim como o porteiro está certo em falar do caso do
genro e da necessidade da soltura dos réus. O problema é que o juiz não
poderia ter decidido como decidiu. A sociedade quer saber o que o
direito (conforme o conceito acima) tem a responder neste caso. Isso se
chama de responsabilidade política do juiz e o seu dever de prestação de
contas (accountability). Simples. Não pagamos o bom salário de
sua excelência para fazer juízos de valor sobre os erros ou acertos do
STF ou do parlamento da República. Juiz fala nos autos do processo, como
dizia o grande Paulo Brossard.
Claro: se você quer saber o
significado de um significante, “pergunte por aí”, não é mesmo? Tudo
muito simples, não fosse o Direito um empreendimento (extrema e
justificadamente) complexo. Fosse trabalho do jurista confirmar os
pré-conceitos da sociedade, do homem médio (essa figura metafísica que, ainda hoje!, habita boa parte da resumisistica e manualística em Pindorama), para que precisaríamos de uma Constituição? De uma carta de direitos? De códigos legais?
Sempre
que me deparo com decisões como esta, fico num dilema. Uma mistura de
tédio, preguiça e melancolia enfrentam um “sentimento de dever”, por
assim dizer. Volto à carga para explicar o óbvio: decisões jurídicas
corretas têm de ser universalizáveis, sob pena de contrariarem o
fundamento da democracia — a igualdade! Ou abro um bom vinho? Que tal
fazer os dois? Vamos lá.
Numa palavra final.
Volto a Dworkin: você pode chegar à resposta adequada a Constituição
a respeito de questões políticas e morais controvertidas, como as cotas
em Universidades, por exemplo, através de um programa televisivo
parcial, ou mesmo jogando uma moeda para cima. Você pode, mas será um irresponsável moral se o fizer. Não há valor em acertar por acaso.
Por isso, retomo aqui um conceito no qual venho insistindo em minhas colunas e livros: a responsabilidade política dos juízes.
Quando se cobra do julgador o dever de fundamentar suas decisões, de
argumentar com princípios, de responder aos argumentos das partes, de
ser coerente etc., não se está propriamente oferecendo a garantia de que
suas decisões serão, percorrido este caminho, juridicamente corretas. Não se trata de uma obrigação de resultado, mas de meio[2]: agir responsavelmente em busca da resposta correta tem um valor em si.
De novo: sei lá eu se o juiz da operação lavoura limpa acertou
ou errou ao conceder a liberdade aos 21 imputados. Como disse, é
provável que sim. Agora, o que posso dizer a vocês (na verdade, devo
dizer a vocês — mesmo que uma parcela não goste que eu escreva coisas
sofisticadas, porque preferem o mundo do senso comum dos livros
resumidinhos, fofinhos e mastigadinhos) é que uma decisão como esta não honra o caráter democrático com que o Direito deve estar comprometido em Estados Constitucionais. A decisão não é legítima, porque não amparada em argumentos de princípio. Não é universalizável, porque não posso simplesmente fazer um bypass
no Direito Penal-Processual Penal por conta da (absolutamente
constrangedora e, até, criminosa) situação carcerária do país. E,
registre-se, nem o juiz deve ter compromissos com os erros institucionais
do passado, não é disso que trata o dever de coerência e integridade.
Desde quando dois erros fazem um acerto (Ah, mas se o Supremo soltou os
caras da "lava jato", então anything goes)?
Enfim. Feita a
coluna, hora do vinho, do livro... Até que me apareça uma nova decisão,
um novo problema, um novo sentimento de dever. Ao fazer o que faço,
lembro-me de Sísifo. A diferença é que não fui condenado a rolar a pedra
pela montanha: eu a rolo porque acredito no que faço. Faz escuro,
mas...eu canto, dizia o poeta.
Post scriptum 1: Por que Karl Max desistiu de estudar e foi vender drogas
Não poderia me furtar a fazer uma brevíssima observação sobre a
entrevista da Secretária Nacional de Segurança Pública do Ministério da
Justiça, Regina Miki, também presidente do Conselho Nacional de
Segurança Pública e presidente da Comissão Nacional de Segurança Pública
nos Portos (Conportos). Uau! Como ela consegue fazer tudo isso? Esse
governo Dilma sobrecarrega os seus militantes, pois não? Mas, enfim...
Diz a secretária que não existe estudo que relacione o uso de drogas com
a prática de crimes. Diz que quem diz isso está no senso comum. Hum,
hum. Por isso é que minha coluna se chama Senso Incomum! Mas,
porque a doutora não vai dizer isso em Harvard? Em Munique, Oxford... O
mundo espera por isso. Por que Pindorama sempre é vanguarda? Aliás, já
que não há (sic) nenhum estudo, a drogadição e tudo o que se relaciona a
esse fenômeno nem existe.
Como diria o padre Quevedo: Isto não ecxiste!
Consequentemente, não se sabe qual é a razão de o país viver esse caos.
Aliás, como não há um estudo sobre o caos — morrem mais de 60 mil
pessoas por ano vitimas de homicídio e centenas de milhares de assaltos
cujas cifras ninguém conhece e dos quais são investigados menos de 8% —
ele, o caos, também não existe! A secretária Regina Miki acaba de
esclarecer tudo. Bingo!
Outra afirmação dela: “Para o senso comum,
se eu não estiver envolvida com droga, com roubo, com quadrilha eu não
serei alvo potencial de homicídio”. Como se mede esse senso comum,
doutora Miki? Quem disse isso? Alguém pode me dizer se conhece pessoas
que pensam assim, fora a própria Secretária? E no que isso explica o
caos da segurança pública de Pindorama? O comentarista da ConJur de
nome “Palpiteiro da web” matou a charada da “ciência da entrevista da
secretária”:
Primeiro ela diz que “não existe estudo que relacione o uso
de drogas com a prática de crimes”. Em seguida, arremata: “(...) o que
se tem certeza é que o sistema prisional hoje está superlotado por gente
que cometeu ‘pequenos furtos ou roubos para a manutenção de um vício”.
Binguissimo!
Desculpem-me, mas não tenho paciência para essas coisas. Essa conversa sessentaoitista
do tipo é
“proibido proibir” e/ou outros argumentos quetais próprios de
um infantilismo revolucionário que faria Lenin (que falou da doença
infantil...bem, todos sabemos do que trata) corar, já se esgotou. Até Karl Max largou o estudo e foi vender drogas no Rio (não resisto em fazer essa blague — ver aqui). A militância começa a irritar até mesmo os que podem simpatizar, se entendem o que quero dizer!
Mal
sabe (ess)a esquerda brasileira que os que mais sofrem com a violência
são justamente... os pobres (— putz, não há estatísticas sobre isso...)
que a secretária visa a defender (a secretária deve saber o que é
tiroteio entre polícia e traficantes, bala perdida-achada, etc, pois
não?). Pindorama é jabuticaba. Punir por aqui é visto como algo ruim. E
construir presídios é atraso. Acredita-se no homem bom “russoniano”
(sic). E, no limite, acredita-se, como disse um preclaro Secretário da
Segurança (substituto) de um governo de esquerda no RS nos anos 90, em
reunião em que os policiais clamavam por maiores recursos para combater
os roubos que assolavam os pampas: assalto acirra a luta de classes
(portanto, assaltantes podem ser revolucionários! — pobre Karl, não o do
Rio, mas o alemão barbudo). Pois é: assalto acirra a luta de classes...
Enfim. A culpa da desastrada entrevista deve ser do Pedro Canário, o
entrevistador. Esse Pedro...
Post scriptum 2: O funk da aula: eis por quê Karl Max largou o direito! É só um beijinho no ombro!
https://www.youtube.com/watch?v=tY6OSEraFfg
Digam-me, depois de
olharem este vídeo, se eu é quem sou birrento, implicante, ou se, de
fato, é o réu — ensino jurídico de cursinhos e faculdades tipo-balão —
que não se ajuda? O final é magnífico e mostra porque Pindorama não tem
mais jeito (depois nos queixamos quando o “mercado” paga R$ 17 ao
causídico por uma audiência):
“Vamu aprendê isso aí. Porque isso não é difícil. Na verdade é só um decoreba básico, com muito beijinho no ombro”. (sic)
Mostrei
o vídeo para D. Rosane, que repetiu, suspirando, a já clássica frase da
mulher do sujeito que chega em casa com piercing no umbigo (ver aqui): “— Meu Deus”. Fujamos para as montanhas. A salvação está no cume.
[1] Estou examinando com os alunos a obra de Dworkin que trata disso (caso Riggs v. Palmer e a formação dos princípios).
[2] Isso está, também, no Levando o Direito a Sério, de Francisco Motta. Esse conceito de epistemologia da responsabilidade é amplamente estruturado por Dworkin em seu Justice for Hedgehogs. Ver também do mesmo Motta, Ronald Dworkin e a decisão jurídica – no prelo.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor, doutor e pós-Doutor em Direito.
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