Embora comemorada, a sanção da reforma da Lei de Arbitragem
pela Presidência da República também foi recebida com ar de desencanto
pela comunidade jurídica. O texto foi sancionado na noite da terça-feira
(26/5), mas os dispositivos que permitiam o uso da arbitragem para
discutir conflitos trabalhistas e decorrentes de relações de consumo
foram vetados pelo vice-presidente, Michel Temer, que está no exercício
da Presidência — clique aqui para ler a mensagem de veto.
O novo texto adicionava três parágrafos ao artigo 4º da Lei de Arbitragem. O dispositivo define o que é a cláusula compromissória – mecanismo por meio do qual se insere num contrato a previsão de arbitragem para discutir determinados litígios. E a nova lei dizia que essa cláusula podia ser inserida em contratos de trabalho e em contratos de adesão relacionados a consumo.
Havia ressalvas. No caso trabalhista, a cláusula só poderia ser inserida por iniciativa do trabalhador e só era permitida em casos de cargo de confiança ou de executivos. No caso dos contratos de adesão, teria de ser por iniciativa do consumidor ou mediante expressa autorização dele.
Os três parágrafos foram vetados. No caso dos contratos de adesão, o veto foi a pedido do Ministério da Justiça. Na mensagem de veto, a pasta afirmou que os dispositivos autorizam a arbitragem “de forma ampla” sem deixar claro que o consumidor pode pedir a instauração de juízo arbitral também no decorrer do contrato, e não apenas no momento de sua assinatura. “Em decorrência das garantias próprias do direito do consumidor, tal ampliação do espaço da arbitragem, sem os devidos recortes, poderia significar um retrocesso e ofensa ao princípio norteador de proteção do consumidor”, diz a pasta.
Já o veto ao caso trabalhista veio do Ministério do Trabalho. Diz a pasta que, ao afirmar que só executivos ou ocupantes de cargos de direção podem ir para arbitragem para resolver seus conflitos trabalhistas, a lei “acabaria por realizar uma distinção indesejada entre empregados”. O Ministério também afirma que a lei usava de “termo não definido tecnicamente na legislação trabalhista”, o que “colocaria em risco a generalidade de trabalhadores que poderiam se ver submetidos ao processo arbitral”.
Na trave
Quem acompanhou as discussões de perto acusa o governo de ter se rendido a “pautas corporativas” ao vetar os dois dispositivos. A comunidade jurídica comemorava a inclusão das duas possibilidades de arbitragem na nova lei. As associações de consumo, como o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), se colocaram contra, mas já quando o texto estava em fase de discussão no Congresso.
O anteprojeto da lei foi elaborado por uma comissão de juristas presidida pelo ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça. O advogado Marcelo Nobre, um dos membros da comissão, reconhece que o que foi sancionado já representa avanços importantes em relação à arbitragem. Mas lamenta o desfecho.
“O Senado ofereceu ao país uma lei de arbitragem do Século XXI”, comenta. Segundo ele, “os vetos impedem a evolução plena da lei a sua entrada definitiva no Século XXI”. “Infelizmente algumas forças corporativas que ainda se encontram no século passado conseguiram convencer o Poder Executivo de que o avanço deveria ser com vetos.”
Já o advogado Caio Cesar Rocha, do Rocha, Marinho e Sales Advogados, outro dos membros da comissão, se diz frustrado. “Os vetos foram dados em temas importantes", lamenta. “Houve uma interpretação equivocada. Foi como se a ideia fosse desrespeitar direitos trabalhistas e do consumidor, quando na verdade o respeito às garantias era total. As previsões eram bastante restritas, não havia nem espaço para desrespeito”. Ele também afirma que as entidades de defesa do consumidor não apresentaram qualquer manifestação durante a elaboração do anteprojeto.
Melhorou, mas piorou
A advogada Adriana Braghetta, referência no tema da arbitragem e integrante de algumas importantes instituições arbitrais, também foi membro da comissão de juristas que elaborou o anteprojeto. E é mais uma a criticar os vetos.
Segundo ela, a forma com que o texto saiu do Senado era “muito mais protetiva ao consumidor” do que a lei atual. O texto da Lei 9.307, a Lei de Arbitragem, autoriza o uso do instituto em contratos de adesão — o que permite a interpretação de que autoriza também para casos de relações de consumo.
O novo texto, segundo Adriana, explicitava em que situações a arbitragem poderia ser usada. “O veto agora vai ser analisado pelo Congresso, e se o intuito é proteger o consumidor, o melhor é derrubá-lo”, afirma.
Na questão trabalhista, ela garante que “não foi feita nenhuma revolução”. “Fomos bastante restritivos e até recebemos críticas dizendo que fomos muito comedidos”, lembrou. Ela também explica que a arbitragem só seria permitida para diretores estatutários ou administrador, e só se a iniciativa partir do trabalhador. “É um pequeno avanço, ainda muito restrito, e o melhor é derrubar o veto.”
Nem tão simples
A advogada Cármen Tibúrcio, que é professora de Direito Internacional Privado e também leciona arbitragem na Faculdade de Direito da Uerj, não é tão veemente. Para ela, os vetos não são sem motivo.
"Essas questões vetadas são polêmicas e não só no Brasil", pondera. Na França, por exemplo, explica, a jurisprudência só permite arbitragem em relações de trabalho depois do fim do contrato. Nos casos de consumo, só nas relações internacionais de consumo.
Segundo ela, no caso da arbitragem consumerista, há "muitas importantes vozes no Brasil que se opõem". Isso porque o artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor afirma que é abusiva a cláusula que permite a arbitragem em casos de consumo. "Justamente porque há uma relação de hipossuficiência na questão", segundo Cármen.
Foi a jurisprudência, conta a professora, que passou a admitir a arbitragem quando instaurada por iniciativa do consumidor. Mas ainda haveria temas pendentes de regulamentação, como quem ficaria responsável pelos custos do processo, ou quem escolheria (e pagaria) o árbitro.
"Os pontos vetados não são tão pacíficos. Claro que a comissão foi bastante cuidadosa, mas não é um debate simples. Por isso as justificativas para os vetos não são sem sentido", pondera a professora.
“Ranços e preconceitos”
Nem só os membros da comissão criticaram os vetos. O consumerista Francisco Fragata Júnior, do Fragata e Antunes Advogados, considera que “mais uma vez se vetam avanços na legislação brasileira por conta de ranços e preconceitos”.
Ele analisa que o texto era claro em só permitir a arbitragem nos casos em que a iniciativa fosse do consumidor ou que houvesse expressa autorização dele. O advogado reconhece que poderia haver abusos, mas “é bastante claro” que essa cláusula teria alcance restrito.
O advogado afirma que, pelos custos, não seria qualquer relação de consumo que seria levada ao juízo arbitral. É a mesma avaliação que faz Adriana Braghetta: “Isso não se destina a qualquer consumidor. É para casos de quem gastou muito dinheiro, como quem reforma uma casa ou compra um carro de luxo. O custo de se instalar uma arbitragem não justifica que ela seja usada para toda e qualquer situação de consumo”.
Fragata Júnior ainda acrescenta que, nos casos de abuso, seria muito simples impugnar a cláusula “por vício de vontade” no Judiciário. “O juiz, em seu poder integrativo assegurado pelo artigo 51, parágrafo 2º do Código de Defesa do Consumidor, colocaria a solução correta no caso. Com o tempo a situação se estabilizaria, pois ações coletivas podem por cobro a abusos”. A conclusão de Fragata é que se está "menosprezando" a arbitragem.
O novo texto adicionava três parágrafos ao artigo 4º da Lei de Arbitragem. O dispositivo define o que é a cláusula compromissória – mecanismo por meio do qual se insere num contrato a previsão de arbitragem para discutir determinados litígios. E a nova lei dizia que essa cláusula podia ser inserida em contratos de trabalho e em contratos de adesão relacionados a consumo.
Havia ressalvas. No caso trabalhista, a cláusula só poderia ser inserida por iniciativa do trabalhador e só era permitida em casos de cargo de confiança ou de executivos. No caso dos contratos de adesão, teria de ser por iniciativa do consumidor ou mediante expressa autorização dele.
Os três parágrafos foram vetados. No caso dos contratos de adesão, o veto foi a pedido do Ministério da Justiça. Na mensagem de veto, a pasta afirmou que os dispositivos autorizam a arbitragem “de forma ampla” sem deixar claro que o consumidor pode pedir a instauração de juízo arbitral também no decorrer do contrato, e não apenas no momento de sua assinatura. “Em decorrência das garantias próprias do direito do consumidor, tal ampliação do espaço da arbitragem, sem os devidos recortes, poderia significar um retrocesso e ofensa ao princípio norteador de proteção do consumidor”, diz a pasta.
Já o veto ao caso trabalhista veio do Ministério do Trabalho. Diz a pasta que, ao afirmar que só executivos ou ocupantes de cargos de direção podem ir para arbitragem para resolver seus conflitos trabalhistas, a lei “acabaria por realizar uma distinção indesejada entre empregados”. O Ministério também afirma que a lei usava de “termo não definido tecnicamente na legislação trabalhista”, o que “colocaria em risco a generalidade de trabalhadores que poderiam se ver submetidos ao processo arbitral”.
Na trave
Quem acompanhou as discussões de perto acusa o governo de ter se rendido a “pautas corporativas” ao vetar os dois dispositivos. A comunidade jurídica comemorava a inclusão das duas possibilidades de arbitragem na nova lei. As associações de consumo, como o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), se colocaram contra, mas já quando o texto estava em fase de discussão no Congresso.
O anteprojeto da lei foi elaborado por uma comissão de juristas presidida pelo ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça. O advogado Marcelo Nobre, um dos membros da comissão, reconhece que o que foi sancionado já representa avanços importantes em relação à arbitragem. Mas lamenta o desfecho.
“O Senado ofereceu ao país uma lei de arbitragem do Século XXI”, comenta. Segundo ele, “os vetos impedem a evolução plena da lei a sua entrada definitiva no Século XXI”. “Infelizmente algumas forças corporativas que ainda se encontram no século passado conseguiram convencer o Poder Executivo de que o avanço deveria ser com vetos.”
Já o advogado Caio Cesar Rocha, do Rocha, Marinho e Sales Advogados, outro dos membros da comissão, se diz frustrado. “Os vetos foram dados em temas importantes", lamenta. “Houve uma interpretação equivocada. Foi como se a ideia fosse desrespeitar direitos trabalhistas e do consumidor, quando na verdade o respeito às garantias era total. As previsões eram bastante restritas, não havia nem espaço para desrespeito”. Ele também afirma que as entidades de defesa do consumidor não apresentaram qualquer manifestação durante a elaboração do anteprojeto.
Melhorou, mas piorou
A advogada Adriana Braghetta, referência no tema da arbitragem e integrante de algumas importantes instituições arbitrais, também foi membro da comissão de juristas que elaborou o anteprojeto. E é mais uma a criticar os vetos.
Segundo ela, a forma com que o texto saiu do Senado era “muito mais protetiva ao consumidor” do que a lei atual. O texto da Lei 9.307, a Lei de Arbitragem, autoriza o uso do instituto em contratos de adesão — o que permite a interpretação de que autoriza também para casos de relações de consumo.
O novo texto, segundo Adriana, explicitava em que situações a arbitragem poderia ser usada. “O veto agora vai ser analisado pelo Congresso, e se o intuito é proteger o consumidor, o melhor é derrubá-lo”, afirma.
Na questão trabalhista, ela garante que “não foi feita nenhuma revolução”. “Fomos bastante restritivos e até recebemos críticas dizendo que fomos muito comedidos”, lembrou. Ela também explica que a arbitragem só seria permitida para diretores estatutários ou administrador, e só se a iniciativa partir do trabalhador. “É um pequeno avanço, ainda muito restrito, e o melhor é derrubar o veto.”
Nem tão simples
A advogada Cármen Tibúrcio, que é professora de Direito Internacional Privado e também leciona arbitragem na Faculdade de Direito da Uerj, não é tão veemente. Para ela, os vetos não são sem motivo.
"Essas questões vetadas são polêmicas e não só no Brasil", pondera. Na França, por exemplo, explica, a jurisprudência só permite arbitragem em relações de trabalho depois do fim do contrato. Nos casos de consumo, só nas relações internacionais de consumo.
Segundo ela, no caso da arbitragem consumerista, há "muitas importantes vozes no Brasil que se opõem". Isso porque o artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor afirma que é abusiva a cláusula que permite a arbitragem em casos de consumo. "Justamente porque há uma relação de hipossuficiência na questão", segundo Cármen.
Foi a jurisprudência, conta a professora, que passou a admitir a arbitragem quando instaurada por iniciativa do consumidor. Mas ainda haveria temas pendentes de regulamentação, como quem ficaria responsável pelos custos do processo, ou quem escolheria (e pagaria) o árbitro.
"Os pontos vetados não são tão pacíficos. Claro que a comissão foi bastante cuidadosa, mas não é um debate simples. Por isso as justificativas para os vetos não são sem sentido", pondera a professora.
“Ranços e preconceitos”
Nem só os membros da comissão criticaram os vetos. O consumerista Francisco Fragata Júnior, do Fragata e Antunes Advogados, considera que “mais uma vez se vetam avanços na legislação brasileira por conta de ranços e preconceitos”.
Ele analisa que o texto era claro em só permitir a arbitragem nos casos em que a iniciativa fosse do consumidor ou que houvesse expressa autorização dele. O advogado reconhece que poderia haver abusos, mas “é bastante claro” que essa cláusula teria alcance restrito.
O advogado afirma que, pelos custos, não seria qualquer relação de consumo que seria levada ao juízo arbitral. É a mesma avaliação que faz Adriana Braghetta: “Isso não se destina a qualquer consumidor. É para casos de quem gastou muito dinheiro, como quem reforma uma casa ou compra um carro de luxo. O custo de se instalar uma arbitragem não justifica que ela seja usada para toda e qualquer situação de consumo”.
Fragata Júnior ainda acrescenta que, nos casos de abuso, seria muito simples impugnar a cláusula “por vício de vontade” no Judiciário. “O juiz, em seu poder integrativo assegurado pelo artigo 51, parágrafo 2º do Código de Defesa do Consumidor, colocaria a solução correta no caso. Com o tempo a situação se estabilizaria, pois ações coletivas podem por cobro a abusos”. A conclusão de Fragata é que se está "menosprezando" a arbitragem.
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