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de maio, dia em que esta coluna circula, é dia de Santo Ivo, protetor
dos advogados. Trata-se de um padre franciscano que nasceu e viveu na
França durante a segunda metade do século XIII. Existe uma Igreja em seu
louvor em São Paulo, na região do Ipiranga, bairro de Jardim Luzitânia.
Espero que ele permaneça protegendo a nós, advogados, e ilumine a todos
que estão com a difícil tarefa de reformar o sistema de processo
administrativo tributário federal, em especial o Conselho Administrativo
de Recursos Fiscais (Carf),
órgão federal julgador de segunda instância administrativa, que se
encontra envolvido em diversas acusações de irregularidades.
Não
vou tratar das acusações que pairam sobre o Carf, embora folgue em ver
pelos jornais que a cifra de R$ 19 bilhões inicialmente apontada como
desviada dos cofres federais já teve sua estimativa reduzida para ainda
enormes R$ 5 bilhões. Todas as irregularidades devem ser apuradas e
punidas, respeitado o devido processo legal e com transparência.
Está
na pauta do dia das discussões que vêm ocorrendo nos meios jurídicos
financeiros e tributários a reorganização do Carf. Faço coro com Heleno
Torres, que escreveu sobre o processo administrativo
fiscal como garantia insuprimível de nosso ordenamento jurídico. Heleno
tece uma série de considerações sobre o instituto e faz algumas
sugestões que subscrevo.
Em outra coluna
tratei do voto de qualidade no Carf, matéria que bem poderia voltar a
ser debatida nessa etapa de reformas que se inicia. A Fecomercio/SP
apresentou uma sugestão acerca desse tema, que é a do voto de minerva
não ser do presidente dos órgãos fracionários do Carf, sempre um
representante do Fisco, mas do relator do processo, o que é uma boa
ideia e deve ser levada em consideração.
Quero nesta ocasião
alertar para duas restrições criadas pelo Decreto 8.441, de 29 de abril
de 2015, que atropelou o processo de consulta pública iniciado pelo
Ministério da Fazenda, e antes de seu encerramento estabeleceu que os
Conselheiros do Carf, representantes dos contribuintes, deveriam passar a
ser remunerados.
A primeira restrição diz respeito à distinção entre incompatibilidade e impedimento
para o exercício da advocacia, onde me parece ter havido alguma
imprecisão terminológica. Ou então, certo exagero na medida aplicada.
A segunda restrição diz respeito ao conflito de interesses
aplicável aos Conselheiros do Carf, à semelhança do que é imposto aos
servidores públicos federais, que determina uma série de extensões que
me parecem estar escapando aos acirrados debates que vêm ocorrendo.
Passemos à sua análise.
No que se refere à incompatibilidade ou impedimento
para o exercício da advocacia, o problema surge no artigo 1º, parágrafo
1º, do Decreto 8.441/15, ao determinar que os conselheiros ficarão
sujeitos às restrições no “exercício de atividades profissionais em
conformidade com a legislação e demais normas dos conselhos
profissionais a que estejam submetidos”. O destaque se tornou mais
incisivo quando o parágrafo 2º do artigo 1º do Decreto estabeleceu que
estas restrições “incluem a vedação ao exercício da advocacia contra a
Fazenda Pública federal”, nos termos do Estatuto da OAB (Lei 8906/94).
A
razão da confusão está no fato de que os Conselheiros dos
contribuintes, nessa Corte paritária, não eram remunerados, o que
afastava as restrições do EOAB. A partir de então, com o estabelecimento
de remuneração e a expressa menção acima referida, as restrições se
impõem.
A imprecisão técnica-legislativa gerou incontáveis
confusões e o ponto central está no artigo 27 do EOAB, que estabelece de
forma clara, que “a incompatibilidade determina a proibição total, e o impedimento, a proibição parcial do exercício da advocacia”.
Pela redação do Decreto, tudo indica que a intenção do parágrafo 2º do artigo 1º foi a de criar um impedimento ao exercício da advocacia contra a Fazenda Pública federal. Os impedimentos,
consoante o artigo 30 do EOAB, impedem que os advogados litiguem contra
a Fazenda Pública que os remunera. Mas a aparente intenção do redator
do Decreto acabou gerando uma incompatibilidade, isto é, na
vedação total a qualquer atividade advocatícia, inserindo os membros do
Carf no artigo 28, VII, do Estatuto, que prevê a impossibilidade de
exercício de advocacia, mesmo em causa própria, dos “ocupantes de cargos
ou funções que tenham competência de lançamento, arrecadação ou
fiscalização de tributos e contribuições parafiscais.”
Aqui está um dos pontos principais do debate, pois ao tornar os ocupantes do cargo de Conselheiro do Carf incompatíveis
para o exercício da advocacia, mesmo em causa própria, seguramente
afastarão muitos interessados qualificados para o exercício daquelas
funções. O advogado que se torna Conselheiro do Carf não poderá nem
mesmo fazer o próprio divórcio! Parece-me uma restrição exagerada para
os futuros ocupantes desse cargo. Seguramente existirão muitos outros
membros qualificados para essa função, mas diversos advogados militantes
se afastarão da assunção desse encargo público. Afinal, terão as mesmas
restrições dos demais funcionários públicos, mas nenhuma de suas
vantagens, como a estabilidade funcional e a aposentadoria com proventos
diferenciados. E, ainda mais, remunerados sob a forma de jeton. Ônus
sem bônus.
O correto, a meu ver, seria a atribuição de impedimento
na forma do EOAB — o que, aliás, está escrito no texto do Decreto, que
transcrevo novamente para confirmar minha assertiva: “as restrições a
que se refere o parágrafo 1º incluem a vedação ao exercício da advocacia contra a Fazenda Pública federal”. Ou seja, contra a Fazenda Pública federal e não contra outros entes públicos ou contra partes privadas. O escopo parece ter sido o de impedir os conselheiros de advogar contra a Fazenda Pública que vai passar a remunerá-los, e não o de torná-los incompatíveis.
Porém, uma coisa é o que se escreve e outra é o que se lê, como ensinam
os mestres da hermenêutica jurídica, dentre eles Lenio Streck e Paulo
de Barros Carvalho. O texto jurídico tem vida própria.
A situação
se torna ainda mais complexa ao se verificar que em ocasião anterior o
Conselho Federal da OAB, analisando consulta formulada acerca da atuação
dos Conselheiros contribuintes perante o Tribunal de Impostos e Taxas (TIT), que é o órgão paulista de segunda instância administrativa, decidiu que, havendo remuneração, os mesmos ficariam incompatíveis — situação idêntica à que se apresenta agora no Carf (Clique aqui
para ler). O TJ-SP chegou a anular a decisão proferida pelo TIT em face
da presença de Conselheiros contribuintes que eram, e permanecem, não
remunerados (Clique aqui para ler).
A segunda restrição trata de conflito de interesses, aplicando
aos novos Conselheiros as mesmas que são impostas aos ocupantes de
cargos na Administração Pública federal. Quem me chamou a atenção para
esse aspecto foi Heleno Torres, em conversa informal sobre o tema. Esta
disposição encontra-se no parágrafo 1º, do artigo 1º, do Decreto, que
restringe as atividades profissionais dos Conselheiros na forma do artigo 10 da Lei 12.813, de 16 de maio de 2013. Esta norma faz remissão aos artigos 4º, 5º e 6º, I, dessa Lei. Daí surgem diversas possibilidades de conflito de interesses,
os quais, consoante a norma do artigo 4º, parágrafo 2º, independem “da
existência de lesão ao patrimônio público, bem como do recebimento de
qualquer vantagem ou ganho pelo agente público ou por terceiro.” Nestes
casos o conflito de interesses não precisará ser posto, pois é desde logo pressuposto, por força da lei.
Além disso, surgem no artigo 5º várias situações que configuram conflito de interesses, dentre elas:
II
- exercer atividade que implique a prestação de serviços ou a
manutenção de relação de negócio com pessoa física ou jurídica que tenha
interesse em decisão do agente público ou de colegiado do qual este
participe.
Observe-se que, caso os Conselheiros venham a ser considerados impedidos, e não incompatíveis, esta norma alcança a sociedade de advogados que o Conselheiro faz parte. Se incompatíveis para o exercício da advocacia, não poderão sequer ser sócios de escritórios de advocacia, mas se forem considerados apenas impedidos
de advogar contra a fazenda pública que os remunera, todas as
restrições aplicáveis aos servidores públicos federais também serão a
eles impostas.
Claro que os atuais Conselheiros não participam das
deliberações em que os clientes de seu escritório têm interesse, mas se
os futuros Conselheiros, escolhidos sob a égide do Decreto 8.441/15,
forem considerados apenas impedidos de advogar, o escritório do qual fazem parte não poderá mais ter atuação perante o Carf, pois pode ocorrer que um leading case
venha a ser firmado através de uma decisão em que participe e isso
venha a beneficiar vários casos em que os clientes de seu escritório
façam parte. Ou ainda, na criação de decisões paradigmáticas ou que
acarretem mudança no entendimento de uma ou mais composições do Carf,
subdividido em várias Seções e Câmaras.
Os demais incisos do artigo 5º acarretam outras restrições, tal como essa:
V
- praticar ato em benefício de interesse de pessoa jurídica de que
participe o agente público, seu cônjuge, companheiro ou parentes,
consanguíneos ou afins, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau,
e que possa ser por ele beneficiada ou influir em seus atos de gestão.
Aqui existe outra implicação que atingirá em cheio muitas das sociedades de advogados que possuem perfil nitidamente familiar.
Ou
seja, o artigo 1º, parágrafo 1º, cria uma série de restrições não
apenas aos Conselheiros do Carf, mas também, por extensão, às sociedades
de que participem como advogados, mesmo que a interpretação do
artigo 1º, parágrafo 2º, seja pelo impedimento e não pela incompatibilidade.
E isso se espraia tanto para as sociedades de advogados que possuem
trezentos sócios, como para aquelas que possuem apenas dois sócios.
A
situação colocada em debate lembra, de imediato, aquelas restrições
impostas pelo Conselho Federal da OAB aos magistrados aposentados, que
deveriam guardar uma espécie de quarentena antes de iniciarem
sua atividade advocatícia e isso deveria atingir todo o escritório ao
qual estivessem filiados, o que se encontra em debate da ADPF 310, com
relatoria do ministro Teori Zavascki, sem liminar. Todavia, um segundo
olhar fará notar que se trata de algo diferente, pois o magistrado
aposentado tem sua influência declinante perante o Poder Judiciário,
enquanto no caso em apreço os membros do Carf permanecem atuantes e
potencialmente gerando os conflitos de interesses mencionados na Lei
12.813/13. Na verdade, a comparação só realça as diferenças entre as
duas situações.
Enfim, as restrições vão se espraiar para as pessoas jurídicas das quais o advogado que aceitar o munus público venha a fazer parte — claro, se o cargo for considerado como gerador de impedimento, e não de incompatibilidade.
Uma
alternativa a tudo isso seria a institucionalização de uma carreira de
servidores públicos cuja função seria a de decidir o processo fiscal
administrativo em segunda instância, provida através de concurso público
de provas e títulos. Everardo Maciel comentou informalmente que é assim
que funciona a segunda instância julgadora em Pernambuco.
São
várias as possibilidades colocadas à frente desse tormentoso assunto que
está sacudindo os meios jurídicos tributários e financeiros atualmente.
Que Santo Ivo nos ajude e ilumine. E também ao Carf e aos advogados que
lá buscarem assento após as reformas que estão em curso. E a toda a
sociedade que necessita desse importante mecanismo de solução
extrajudicial de conflitos fiscais.
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