O mercado financeiro manipula o debate das contas públicas e joga contra o País. Não faz nenhum sentido. Ou faz?
Por Ana Paula RIBEIRO
Se um brasileiro desavisado retornasse ao País na semana
passada, após um período de férias, levaria um susto ao ler os jornais. A
impressão era de que as contas públicas caminhavam para um desastre sem
precedentes em meio a um iminente rebaixamento da nota de classificação
de risco do Brasil. Não é nada disso. Embora a situação fiscal esteja
longe da ideal, tal análise é, na verdade, resultado de uma visão míope
do mercado financeiro, que manipulou o debate nos últimos dias –
possivelmente para ganhar dinheiro com a especulação. Perplexo, o
governo federal mobilizou sua tropa de choque e reagiu ao terrorismo
fiscal.
Mantega: o ministro sabe que a situação fiscal não é a ideal, mas o País
não está à beira de um abismo
Um dos indicadores utilizados mundialmente para medir a
sustentabilidade das contas públicas de um país é a relação entre a
dívida bruta e o PIB. No Brasil, esse índice está em 58,75%, cerca de
cinco pontos percentuais acima do registrado em 2010, mas em linha com
os resultados que antecederam a elevação para a categoria grau de
investimento, em 2008. O temor da perda da condição de país seguro,
portanto, era tão injustificado que duas das maiores agências de
avaliação de risco saíram em defesa do Brasil. Para Shelly Shetty,
responsável na Fitch Ratings pela área de risco soberano da América
Latina, a redução da nota brasileira não depende apenas da relação entre
dívida e PIB.
Ataque especulativo: Augustin, secretário do Tesouro, vê que desconfianças
em relação à política fiscal são exageradas
Segundo ela, outros fatores também são levados em conta, como uma
queda abrupta das reservas em moeda estrangeira. No caso brasileiro, o
escudo de US$ 376 bilhões é uma importante blindagem contra crises.
Shelly recomenda ainda mais investimentos e menos inflação. “Vejo como
positivo o ciclo de aperto monetário do Banco Central, que pode melhorar
a ancoragem das expectativas de inflação”, diz a executiva. Já a
Standard & Poor’s, única agência a colocar a nota do Brasil em
perspectiva negativa, em junho, avisou que provavelmente nenhuma mudança
ocorrerá no curto prazo, uma vez que o costume é esperar até 24 meses
para ver quais medidas serão tomadas para reverter a expectativa de
rebaixamento.
“O Brasil teve uma melhora na última década e está sendo
subestimado”, afirmou Lisa Schineller, diretora da S&P, que
minimizou a possibilidade de o País ser rebaixado a curto prazo, como
pretendem certos veículos de comunicação, como o Financial Times, um dos
arautos do terrorismo fiscal. Ciente de que a situação fiscal pode
atrapalhar a credibilidade do governo, o ministro da Fazenda, Guido
Mantega, anunciou que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social (BNDES) emprestará menos recursos em 2014, concentrando seus
esforços em infraestrutura e reduzindo, assim, a necessidade de aportes
por parte do Tesouro Nacional.
Sem crise: ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann rechaça ideia
de condução equivocada da política fiscal
É por iniciativas como essa que um superávit primário abaixo da
meta não pode ser considerado como o Armagedon. Com os abatimentos
possíveis, como os que descontam os gastos referentes a investimentos do
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a economia para o
pagamento de juros da dívida deveria ser de 2,3% do PIB em 2013. A
expectativa de alguns analistas é que fique um pouco abaixo, em torno de
1,7% do PIB, já considerando as receitas extras provenientes do leilão
do Campo de Libra, de R$ 15 bilhões, e do parcelamento de dívidas de
empresas com a Receita. Bráulio Borges, economista-chefe da LCA
Consultores, sustenta que a piora em 2013 é pontual.
“É um exagero considerar que o comportamento fiscal deste ano irá
se repetir nos próximos exercícios”, diz. “Não é possível extrapolar
para o futuro uma condição atípica.” Outro ponto a ser observado é que
as desonerações tributárias, como a redução do IPI de automóveis, podem
ajudar a acelerar a economia. O economista do banco Brasil Plural,
Rafael Ihara, lembra que um PIB maior contribui para uma melhora fiscal
ao elevar a arrecadação e reduzir a necessidade de estímulos fiscais.
Além da dívida: Shelly, da Fitch, diz que outros itens são avaliados
antes de definir um rating, como as reservas internacionais
“Mas é importante que o governo adote um novo discurso, mostrando
que as promessas de redução dos gastos serão cumpridas”, diz ele. Até
mesmo o Fundo Monetário Internacional (FMI), cuja cartilha ortodoxa está
em desuso, acredita que é provável uma trajetória sustentável da
relação entre dívida e PIB. Em estudo divulgado no mês passado, o
organismo internacional traçou cenários considerando superávits
primários de 3,1%, 2% e 1%. Na maior parte deles, não há sinal vermelho
para o País.
ATAQUE ESPECULATIVO Incomodada com o jogo
pessimista do mercado, a presidente Dilma Rousseff convocou, além do
ministro Mantega, a ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, e o
secretário do Tesouro Nacional, Arno Augustin, para defender o governo.
Gleisi rechaçou, na semana passada, a ideia de uma crise fiscal.
Augustin, por seu turno, também não vê razões para desconfianças
exageradas e considera um “ataque especulativo” a reação negativa ao
déficit de R$ 9 bilhões registrado em setembro. Além dos discursos,
Dilma cobrou medidas concretas para melhorar as contas públicas.
Giro menor: rotatividade do trabalhador gera custos
com o seguro-desemprego, mas pode ser combatida
com melhor processo de seleção, diz Almeida, da Protege
“A situação fiscal do Brasil não está fora de controle, mas é
preciso fazer o dever de casa e retomar a redução da trajetória de queda
da dívida”, diz Luciano Rostagno, estrategista-chefe do banco Mizuho.
Uma iniciativa que deverá contribuir para a redução dos gastos públicos é
a mudança na forma de conceder o seguro-desemprego e o abono salarial.
Esses dois benefícios devem consumir entre R$ 45 bilhões e R$ 47 bilhões
em 2013, um crescimento de quase 20% em relação ao ano anterior. Para
conter e reduzir esses gastos, incompatíveis com uma situação de quase
pleno emprego, começou a valer em novembro a regra que obriga o
trabalhador a buscar um curso de reciclagem após ser demitido pela
segunda vez em um prazo de dez anos.
O treinamento é ministrado em dias úteis e com duração de cerca de
quatro horas diárias. Pode parecer pouco, mas essa medida evita uma
fraude comum, que é o trabalhador ser demitido e, no período em que
recebe o seguro, arrumar um emprego informal. Outras mudanças em estudo
estão sendo negociadas com as centrais sindicais, que se reuniram com o
ministro Mantega na terça-feira 5. O desafio é enorme e envolve o setor
privado. O vice-presidente de gestão de Gente do Grupo Pão de Açúcar,
Antonio Salvador, reconhece que há uma cultura presente em certos grupos
de pessoas que consideram ser possível trabalhar um curto espaço de
tempo e depois, ao ser demitido, viver alguns meses à custa do
seguro-desemprego.
Para evitar esse tipo de comportamento, a saída da companhia foi
aprimorar seu sistema de seleção de pessoal. “É preciso trabalhar na
fonte e refinar o tipo de funcionário que se deseja”, diz Salvador. Os
programas de treinamento, que custam à empresa mais de R$ 50 milhões ao
ano, também contribuem para reduzir a rotatividade e, assim, o número de
funcionários desestimulados e mais propensos a serem demitidos. A
rotatividade no grupo é de 35%, abaixo da média do setor, em torno de
50% ao ano. “Com nossas iniciativas, acreditamos que é possível melhorar
o índice em 5% em 2014”, afirma. Outro setor que também sofre com o vai
e vem de funcionários é o de segurança.
O gerente corporativo de recursos humanos da Protege, Jorge Tavares
de Almeida, aposta num processo seletivo mais rigoroso como solução
para a rotatividade, que chega a 30%. Além disso, o candidato fica
sabendo que a chance de promoção é grande dentro da empresa. “O
trabalhador precisa se sentir valorizado”, afirma Tavares. Para mudar
esse comportamento, é preciso que o governo convença as centrais
sindicais de que uma mudança nas regras do seguro-desemprego é
necessária tanto quanto o combate a projetos no Congresso Nacional, que
podem onerar os cofres públicos em mais de R$ 60 bilhões. O mais grave
deles é o chamado Orçamento Impositivo, que obriga o Tesouro a bancar
qualquer proposta dos deputados e senadores – tendo ou não recursos em
caixa. Ao que parece, alguns parlamentares gostaram do jogo do
terrorismo fiscal.
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