Tempo gasto em problema de consumo deve ser indenizado
Geralmente
tratado como mero aborrecimento pelos tribunais, o tempo gasto para se
resolver um problema de consumo é indenizável. Isso é o que vêm
garantindo acórdãos recentes, que representam uma mudança de rumo na
jurisprudência sobre o assunto. De casos que envolvem demora em fila de
banco a devolução de parcelas pagas em cursos, desembargadores já
aceitam a tese do chamado “desvio produtivo” para justificar a reparação
moral do consumidor. Em síntese, os julgados responsabilizam o
fornecedor pelo tempo gasto para se resolver os problemas que eles
mesmos causaram.
“O
desvio produtivo caracteriza-se quando o consumidor, diante de uma
situação de mau atendimento, precisa desperdiçar o seu tempo e desviar
as suas competências — de uma atividade necessária ou por ele preferida —
para tentar resolver um problema criado pelo fornecedor, a um custo de
oportunidade indesejado, de natureza irrecuperável”, explica o advogado
capixaba Marcos Dessaune (foto), autor da tese Desvio Produtivo do Consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado, que começou a ser elaborada em 2007 e foi publicada em 2011 pela editora Revista dos Tribunais.
Com base neste fundamento, a 27ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro condenou,
no último mês de janeiro, uma rede de lojas a indenizar em R$ 5 mil um
consumidor por conta de um defeito em um aparelho celular de R$ 246,90,
que apresentou defeito dois dias após a compra. A loja pretendia cobrar
R$ 60 pelo reparo. O consumidor recorreu à Justiça e, em 1ª instância, o
tempo gasto foi considerado simples aborrecimento cotidiano. No TJ-RJ, o
entendimento mudou, a favor do consumidor.
A tese tem sido
recorrente no colegiado da corte fluminense. Em outros três casos em que
foi relator, o desembargador Fernando Antonio de Almeida aplicou o
entendimento para condenar as empresas a indenizar os consumidores em
casos de demora de reembolso de mensalidade, tempo gasto em fila de banco e cobrança de cartão falsificado.
“A
perda de tempo da vida do consumidor em razão do mau atendimento de um
fornecedor não é mero aborrecimento do cotidiano, mas verdadeiro impacto
negativo em sua vida, que é obrigado a perder tempo de trabalho, tempo
com sua família, tempo de lazer, em razão de problemas gerados pelas
empresas”, apontam os acórdãos do TJ-RJ.
Horas irrecuperáveis
Se o tempo não é um bem jurídico tangível e expressamente previsto na
Constituição, as decisões demonstram que ele pode ser englobado na
figura do dano moral. Dessaune explica, entretanto, que a reparação pelo
“desvio produtivo” não deve ser confundida com o “dano punitivo”,
utilizado para, além da indenização, punir a empresa e coibir novos
casos. “O tempo é finito, inacumulável e irrecuperável”, diz.
O
advogado explica que, ao contrário da dor e sofrimento abrangidos pela
reparação moral, o tempo é mensurável. Isso pode ser feito, por exemplo,
com o registro de ligações aos serviços de atendimento ao consumidor.
Além da demonstração por parte do consumidor, isso também pode ser
estimado com a inversão do ônus da prova em seu favor, o que já é
previsto pelo Código de Defesa do Consumidor.
Dessaune também
afasta o argumento mais conservador de que a aplicação de sua tese
abriria precedente para uma enxurrada de ações que sobrecarregariam o
tribunais. "Se os fornecedores não cumprem a lei espontaneamente, só
resta aos consumidores lesados fazerem valer seus direitos por
intermédio dos Procons e do Poder Judiciário". E o efeito, acrescenta
ele, poderá ser até o oposto: condenações morais mais elevadas previnem
que novos casos se repitam e a tendência é a diminuição das demandas.
No Tribunal de Justiça de São Paulo, a 5ª Câmara de Direito Privado condenou um fabricante de eletrodomésticos pela demora de seis meses no reparo de uma máquina de lavar. “Sabe-se por evidente presunção hominis que o consumidor quando acusa o vício do produto, lhe é imposta uma verdadeira via crucis
para tentar exigir do fornecedor a devolução do valor pago ou ao menos o
conserto do defeito”, registra o desembargador Fabio Podestá, no
acórdão.
Em análise
de um recurso de uma companhia de TV paga condenada pela cobrança
indevida após cancelamento de assinatura, a 3ª Turma Recursal Cível de
Porto Alegre levou em consideração o tempo gasto pelo usuário como
agravante da situação. “Quanto a ocorrência do dano moral, acrescento
que, diante da não resolução do problema no trintídio, o que forçou o
consumidor a ingressar em juízo, acarretando o agravamento da condição
de vulnerabilidade técnica, jurídica e econômica”, escreveu o relator
Fabio Vieira Heerdt.
A teoria não se aplica somente ao tempo gasto
para se resolver um problema de consumo na Justiça. A simples demora na
prestação de um serviço também pode ser enquadrada, segundo acórdão da
10ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná, que negou provimento
ao recurso de um banco condenado pela demora de atendimento em agência:
“O autor sofreu também o prejuízo do tempo desperdiçado, em razão da
demora em ser atendido, o qual poderia ter sido utilizado de maneira
mais benéfica e proveitosa”.
Não é só nos tribunais que a tese vem sendo aplicada. Na prova
do 53º concurso para promotor do Ministério Público de Minas Gerais, o
candidato devia demonstrar conhecer a base conceitual do “desvio
produtivo”. Citando o próprio Dessaune, o gabarito
previa a seguinte resposta: “Tratamento com desleixo ao consumidor com
perda de tempo útil. A questão poderia ser solvida a tempo e modo
satisfatório pelo fornecedor. Base principal: cláusula de tutela da
pessoa humana, mas desafia regulamentação própria.”
Por enquanto, o
entendimento está no âmbito dos tribunais de Justiça. No Superior
Tribunal de Justiça, por exemplo, ainda prevalece a aplicação do simples
contratempo, como no julgamento do Recurso Especial 431.303/SP:
“Demora, todavia, inferior a oito horas, portanto não significativa, que
ocorreu em aeroporto dotado de boa infraestrutura, a afastar a
caracterização de dano moral, porque, em verdade, não pode ser ele
banalizado, o que se dá quando confundido com mero percalço, dissabor ou
contratempo a que estão sujeitas as pessoas em sua vida comum”.
Clique nos números dos processos para ler as decisões:
TJ-RJ: Apelação Cível 0019108-85.2011.8.19.0208
TJ-RJ: Apelação Cível 0035092-08.2012.8.19.0004
TJ-RJ: Apelação Cível 2216384-69.2011.8.19.0021
TJ-RJ: Apelação Cível 0460569-74.2012.8.19.0001
TJ-SP: Processo 2013.0000712658
TJ-PR: Apelação Cível 1.094.389-0
Colégio Recursal do RS: Recurso 71004406427
53º Concurso do para promotor do MP-MG: prova e gabarito
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