segunda-feira, 8 de abril de 2013

É hora da transição

 
 
Por Claudia Safatle | De Pequim 
 
 
AP / AP 
 
Xi Jinping: o país não tem pretensões hegemônicas e quer ser um ator central na construção da paz e de uma ordem internacional mais justa, disse na sua primeira entrevista como presidente
 
A China começa uma complexa e delicada etapa de reformas. O compromisso que mais marcou os pronunciamentos do governo que assumiu em março, tanto os do presidente Xi Jinping quanto os do primeiro-ministro Li Keqiang, foi com a criação de "instituições". Ele traduz o "sonho chinês" e sintetiza o alcance dessa esperada nova fase. "O que pretendemos é sair de um Estado governado por pessoas para o Estado de direito, governado pelas leis", disse Zhang Yuyan, diretor do Instituto de Economia e Política Mundial da Academia Chinesa de Ciências Sociais, ao Valor. Isso deverá envolver a garantia do direito de propriedade e o respeito a contratos, citou.

A crise financeira global precipitou uma outra transição de grande fôlego: a de uma economia preponderantemente exportadora para um modelo de desenvolvimento sustentado na expansão do mercado interno. A essas se somam ainda outras duas transições não menos importantes: do planejamento ainda central para uma economia mais aberta ao mercado; e de um país fortemente rural - metade da população mora no campo - para uma sociedade urbana e industrializada.

Essas são mudanças estruturais de longo prazo e de dimensões gigantescas que, se realizadas, vão moldar uma nova China - país com 1,3 bilhão de habitantes, renda per capita ainda bastante modesta, de US$ 6.100 ao ano, 56 etnias e cerca de 130 milhões de pessoas abaixo da linha de pobreza (que vivem com menos de US$ 1,00 por dia).

O governo trabalha com uma meta de crescimento anual de 7,5%, necessária para dobrar a renda per capita até 2020; indica que vai levar o regime de previdência para os 700 milhões de trabalhadores do campo; e promete dar início à construção de uma rede de proteção social.

Para Zhang Yuyan, da Academia de Ciências Sociais, o "sonho chinês" pode ser assim resumido: distribuição da riqueza, instituições e valores

Pretende, também, permitir que o setor privado entre em algumas áreas de monopólio estatal, como a de saúde. A prestação de serviços de saúde pelo Estado é bastante precária e motivo de queixas da população. O governo deverá permitir que hospitais sejam construídos e administrados por empresas privadas, assim como o livre fluxo de médicos até mesmo de fora do país, se for preciso.

"O que queremos é deixar o mercado resolver o que ele pode resolver com melhor alocação de recursos; e o Estado, mais profissionalizado, atender ao que o mercado não atende. Estamos na transição do planejamento central para uma economia de mercado socialista", sugere Zhang.

No início do novo governo, reconhecidamente pró-mercado, são intensas as discussões sobre o papel que o Estado e as companhias públicas terão nessa nova fase, assim como pululam os debates sobre uma eventual flexibilização do sistema financeiro, políticas de combate à inflação, manejo da taxa de juros e câmbio. Na penúltima semana de março, o Banco Central da China promoveu um ciclo de conferências com economistas do mundo todo sobre política monetária.

A criação de uma rede de bem-estar social é crucial para a expansão do mercado doméstico. Sem garantia de atendimento das demandas por securidade social, os chineses poupam quase 50% da renda em detrimento do consumo. A poupança privada do país soma, atualmente, US$ 10 trilhões.

Guo Cheng/Xinhua/Zumapress.com / Guo Cheng/Xinhua/Zumapress.com 
 
Zhang: "Com as reformas, o rápido crescimento e as mídias eletrônicas, as ideias estão mudando muito e um dos problemas é que a procura pela riqueza está sendo colocada em primeiro lugar"
 
De estratégia de desenvolvimento, as exportações continuarão sendo muito importantes, mas, agora, para permitir mais importações, assinalou Zhang. O superávit em conta corrente do balanço de pagamentos, de 2,6% do Produto Interno Bruto (PIB), deve cair para a faixa de 1% do PIB até 2015, com a perda do vigor das exportações pela redução da demanda da Europa em crise por produtos chineses. Isso faz a taxa de câmbio se mover, ainda que muito lentamente.

Câmbio não é um assunto que o governo põe em discussão pública. Apesar das pressões do restante do mundo e, particularmente, do governo americano para que o país valorize o renmimbi, essa não é uma equação simples. Câmbio, na China, vai além de um instrumento econômico. É um mecanismo de apaziguamento social e estabilidade política. Não se sabe quantas companhias chinesas iriam à bancarrota caso o governo patrocinasse uma valorização da moeda.

Se hoje o mundo trava uma guerra cambial, ela começou com as políticas de "quantitative easing" nos Estados Unidos e Europa, disse Qin Gang, do Ministério das Relações Exteriores. Taxa de câmbio é uma questão que está sendo "politizada pelos governos dos países desenvolvidos", imersos numa crise sem precedentes, segundo a ótica de Zhang. "A nossa taxa de câmbio teve uma apreciação real de 33% de 2005 até os dias de hoje. Com a crise de 2008 para cá, também estamos nos ajustando", disse. O fato é que com um câmbio desvalorizado e uma mão de obra barata, incansável e sem benefícios, é impossível bater a competitividade da economia chinesa seja lá no que for.

Para continuar gerando empregos numa economia que pretende expandir o mercado doméstico - por ano, cerca de 24 milhões de jovens buscam entrar no mercado de trabalho - e, também, dispor de uma oferta abundante de infraestrutura compatível com a incorporação de novos consumidores, o programa de investimentos do governo chinês é trilionário.

O governo trabalha com uma meta de crescimento anual de 7,5%, necessária para dobrar a renda per capita, de US$ 6.100 ao ano, até 2020

O planejamento quinquenal (2011 a 2015) estima algo como US$ 1,5 trilhão em obras de infraestrutura em rodovias, ferrovias, portos, energia, aeroportos e telecomunicações. O país dispõe de mais de 170 aeroportos comerciais limpos, funcionais e modernos, com trens e esteiras rolantes para deslocamentos entre os terminais e nenhuma fila. Mais 80 aeroportos devem ser construídos até 2015 e outros 100 reformados, com gastos previstos de US$ 400 milhões nesse período. A meta do governo é, também, dobrar, dos atuais 9,3 mil para 18 mil quilômetros, a malha dos trens de alta velocidade nesse mesmo período.

Há críticas à excessiva ambição do programa de investimentos, que acabará produzindo uma superoferta de infraestrutura e logística no país, assim como o boom imobiliário criou cidades fantasmas. "As cidades fantasmas foram um fenômeno do mercado imobiliário. Pessoas que já tinham moradia compraram o segundo imóvel onde ninguém foi morar." Um péssimo investimento, então. "Mas melhor do que se tivessem aplicado nas bolsas de valores", comenta um funcionário do governo, referindo-se aos estragos que a crise global engendrada pelo sistema financeiro do mundo desenvolvido produziu no mercado internacional de capitais.

Nos 30 anos de mudanças no país, 350 milhões de pessoas ascenderam à classe média, que compreende, conforme dados oficiais, uma renda anual de US$ 10 mil a US$ 60 mil. Com 130 milhões abaixo da linha de pobreza, isso significa que cerca de 800 milhões de chineses vivem aquém da classe média e ligeiramente acima da linha de pobreza.

A despeito de todo o crescimento econômico que experimentou nesses anos, que elevou a China à segunda maior economia do mundo, a sociedade tem uma renda per capita muito menor do que a de outras economias emergentes; o padrão educacional está distante, por exemplo, do que fez a Coreia; a rede de proteção social engatinha; quase uma dezena de milhões de chineses não tem acesso à energia elétrica; e a distância entre a riqueza da região costeira e o interior do país é abismal.

Bloomberg / Bloomberg 
 
Fábrica de vagões: o planejamento quinquenal (2011-15) estima algo como US$ 1,5 trilhão em obras de infraestrutura em rodovias, ferrovias, portos, energia, aeroportos e telecomunicações
A China ainda está longe de ser uma nação "rica e forte", como disse o próprio presidente Xi Jinping na sua primeira entrevista, no dia 19.

O modelo de desenvolvimento que o governo perseguirá, salientou ele, obedece ao que vem sendo chamado de "socialismo com características chinesas". Não é fácil compreender essa definição para além de um jogo de palavras. Zhang tenta explicar: "Primeiro, o país continuará sendo governado pelo Partido Comunista [PCC]. As empresas estatais permanecerão com um papel de destaque. E, no longo prazo, acho que a nossa economia de mercado terá como meta o enriquecimento comum, diferentemente do capitalismo, em que um grupo de pessoas tira proveito das outras".

Xi Jinping e Li Keqiang, os dois líderes chineses que vão comandar o país nos próximos cinco anos, renováveis por mais cinco, procuraram, nas últimas semanas, se mostrar à altura da tarefa que têm pela frente. A diplomacia chinesa e a imprensa local, estatal, apresentaram-nos como homens conhecedores do mundo ocidental, cultos e viajados. Li Keqiang é formado em direito e em economia e é fluente em inglês; Xi Jinping, engenheiro químico, é um "homem do povo, um estadista de visão e patrono do sonho chinês", conforme citam os jornais estatais. Ambos estão comprometidos com as reformas econômicas e políticas e com o combate à corrupção que mina o PCC.

Li Keqiang, na entrevista que concedeu logo após ser sacramentado como primeiro-ministro, resumiu em tom dramático o que as mudanças poderão representar: "É uma autorrevolução que pode ser tão dolorosa como decepar o próprio braço". Mas concluiu: "Nós não temos alternativa".

Foi como parte da estratégia de mostrar o presidente da República Popular da China como um homem pragmático e familiarizado com os modos ocidentais, apreciador do futebol, mas também ciente do papel e do peso que a China pretende ter na ordem internacional, que a diplomacia do país preparou todos os pormenores da primeira entrevista de Xi Jinping a jornalistas de cada país dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), no mês passado, e escolheu Moscou para ser a primeira viagem do presidente ao exterior, seguida da reunião dos Brics na África do Sul.

Câmbio, na China, vai além de um instrumento econômico. É um mecanismo de apaziguamento social e estabilidade política

"Estamos com centenas de pedidos de entrevistas da imprensa do mundo todo. Estou com inveja de vocês", comentou o diretor-geral do Departamento de Informação, Qin Jang, durante almoço com os jornalistas. Foi um gesto surpreendente do novo governo, primeiro por decidir dar uma entrevista coletiva - o que não é comum - e, segundo, por escolher a quem dar a entrevista.

Impensável no jornalismo brasileiro, o modelo da entrevista seguiu os padrões locais: perguntas previamente conhecidas e respostas sem interrupções nem questionamentos. Também foi nesses moldes a entrevista do primeiro-ministro para mais de 800 jornalistas do mundo todo. O Partido Comunista e o governo chinês não trabalham com surpresas, tanto que a sucessão de Hu Jintao começou a ser preparada em 2007 e em 2012 cumpriu um longo ritual que só terminou em 14 de março deste ano, quando Xi Jinping tomou posse e Li Keqiang foi proclamado primeiro-ministro durante o Congresso Nacional do Povo.

Com mais de 80 milhões de membros, o PCC é o partido que governa a China. Há, porém, outros oito partidos chamados de forma genérica de democráticos. Eles participam da Conferência Política Consultiva do Comitê Nacional do Povo Chinês (CCPPC) e alguns ocupam cargos na administração pública.

Xi Jinping é da geração dos "príncipes" do Partido Comunista, a primeira nascida depois da revolução maoísta de 1949. Seu pai, revolucionário e ex-vice-primeiro-ministro Xi Zhongxun, acabou caindo em desgraça ainda durante a era Mao Tsé-tung, em 1962. Foi reabilitado por Deng Xiaoping, a quem ajudou a fazer as reformas liberalizantes.

Nelson Ching/Bloomberg / Nelson Ching/Bloomberg 
 
O premiê Li Keqiang, sobre o que as mudanças poderão representar: "É uma autorrevolução que pode ser tão dolorosa como decepar o próprio braço. Mas não temos alternativa"
 
No período em que seu pai esteve preso, durante a Revolução Cultural, o novo presidente teve uma vida bem difícil. Aos 16 anos foi enviado a um vilarejo na província de Shaanxi, no norte do país, para "reeducar-se". Lá, trabalhou como carregador de estrume, puxador de carreta de carvão e na lavoura.

Da sua biografia consta que nessa época as pulgas não o deixavam dormir. Com o tempo foi migrando de províncias, assumindo as lideranças locais do Partido Comunista até chegar à direção central do PCC em 2007. Em 2008 tornou-se vice-presidente do país.

Em uma entrevista a uma rede estatal de TV, Xi Jinping disse que sofreu "mais amarguras que a maioria das pessoas". Na juventude, para sobreviver, decidiu ser "o mais vermelho dos vermelhos", contou.

Apesar dessa experiência, temas como direitos humanos, liberdades individuais e democracia são pouco abordados pelo novo governo. A perguntas dessa natureza, em geral, a resposta vem em forma de provérbios ou de adjetivos enigmáticos: "Apenas os donos dos sapatos sabem se os sapatos são adequados ou não" ou "não existe o melhor, apenas melhor", como respondeu Xi Jinping a uma questão sobre direitos humanos na China, antes de assumir a Presidência.

Para Zhang, da Academia de Ciências Sociais, o "sonho chinês" pode ser assim resumido: distribuição da riqueza, instituições e valores. O primeiro - a distribuição da renda - precisa de um crescimento sustentável de longo prazo e não do crescimento rápido e elevado a qualquer custo. Hoje, por exemplo, um terço da China vive sob uma poeira amarela de poluição causada pela produção sem preocupações ambientais. 

"Temos que construir uma civilização ecológica", disse ele. Segundo, criar as instituições e colocar o país sob o império da lei. No regime chinês não há separação de poderes. A Suprema Corte, assim como todos os órgãos da administração pública, do Judiciário e do Legislativo, está sob a tutela do Congresso Nacional do Povo. E, por fim, preservar os valores milenares da sociedade chinesa.

Na estrutura da economia chinesa não há negócios sem a participação do Estado. Mas na rua as leis de mercado se fazem presentes

"Com as reformas, o rápido crescimento e as mídias eletrônicas, as ideias estão mudando muito e um dos problemas é que a procura pela riqueza está sendo colocada em primeiro lugar. As pessoas, hoje, dão mais ênfase aos seus direitos e menos peso às suas responsabilidades", comentou.

A própria arquitetura revela a força do capital nos últimos 30 anos. Os prédios residenciais que nos anos 1980 margeavam a principal avenida que corta Pequim, a avenida da Paz Perpétua - construções monótonas de baixa qualidade da era maoísta -, deram lugar a gigantescos e luxuosos edifícios. O mar de bicicletas que tomava as ruas da capital foi substituído por um trânsito infernal de carros que agrava a poluição.

Na estrutura da economia chinesa não existem negócios sem a participação do Estado. Mas na rua as leis de mercado se fazem presentes, e o que determina os preços, nas pequenas atividades cotidianas, é a oferta e a procura. Um mesmo trecho rodado de táxi custa valores distintos ao longo do dia. Se o trânsito está tranquilo, paga-se 15 yuans para percorrer cinco quilômetros. Na hora do rush, essa mesma corrida sai por 50 yuans.

Já no comércio à margem dos grandes shoppings, o que faz o preço é a capacidade de o consumidor negociar. Se ele for ocidental, já sai em enorme desvantagem. Por mais habilidoso que seja para barganhar, sempre pagará mais do que um nativo. A economia das ruas tem as próprias leis.

A China está diante de imensos desafios, retratados pelas quatro transições que foram citadas por Zhang. Os novos governantes asseguram que o caminho da nação chinesa será o desenvolvimento "pacífico" e a convivência "harmoniosa" com o restante do mundo.



Xi Jinping disse, na sua primeira entrevista, que o país - que em 2020 será a maior economia do planeta - não tem pretensões hegemônicas no mundo nem pensa em expandir seu território. Quer, ao contrário, ser um ator central na construção da paz e de uma ordem internacional mais justa.

Foi isso que ele afirmou, também, ao primeiro visitante que recebeu como presidente da República Popular da China, o secretário do Tesouro americano, Jacob Lew, enviado de Barack Obama: a governança do mundo precisa refletir o peso das economias emergentes. E, se os Brics representam cifras impressionantes - 40% da população, 15% do comércio e 20% do PIB mundial -, isso se deve, sobretudo, à China.

O foco da política externa americana é a Ásia, e as tensões entre os dois gigantes não são desprezíveis.
Há 40 anos, quando pisou na China de Mao Tsé-tung e os Estados Unidos reestabeleceram relações com aquele país, Richard Nixon comentou: "Bem, pare um minuto e pense no que poderia acontecer se alguém com um sistema de governo decente assumisse o controle do continente. Deus do céu (...) Não haveria poder no mundo capaz sequer - quer dizer, você põe 800 milhões de chineses para trabalhar sob um sistema decente (...) e eles viram os líderes do mundo", conta Henry Kissinger em seu livro "Sobre a China".

Diz-se que Napoleão, há 200 anos, teria avisado que se devia "deixar a China adormecida porque, quando ela acordar, vai sacudir o mundo", relata James Kynge no livro "A China Sacode o Mundo". Não se sabe ao certo se ele disse isso mesmo. O fato é que a China não vai parar as reformas. E elas não poderão ir muito devagar para não virar estagnação nem rápido demais que se transformem em desordem.

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