Passei a infância achando que o Brasil era perfeito. Só entendi que
vivíamos sob ditadura quando os exilados começaram a voltar. Até então,
para mim, a imagem do certificado da Censura Federal antes dos programas
de televisão era a coisa mais normal do mundo. Nesse tempo, ensinavam
nas escolas que o Brasil era uma democracia racial.
Na quarta série, havia apenas um menino negro na minha classe. Ele
viajava para a Disney nas férias e usava roupas de grife. Tinha colega
que dizia que era adotado. Eu tinha dez anos e não entendia que essa
suspeita era indicativo de que o preconceito racial já estava entre nós.
Mas o mito da democracia racial faliu. O autoengano coletivo não
resistiu ao processo de redemocratização pelo qual passou o país.
Hoje, pode-se divergir quanto às maneiras de lidar com a questão, mas
todos reconhecem que o Brasil é racialmente injusto. Entendemos melhor a
necessidade de eliminar o insidioso racismo brasileiro, que pode ser
invisível, mas é palpável e deixa vítimas reais.
"No Brasil a questão é de nível social, não racial. Veja o caso do
Pelé." Perdi as contas das vezes em que ouvi isso. Você também deve ter
ouvido --ou falado-- a mesma coisa. No entanto, nunca entendi, no caso, a
diferença entre "racial" e "social". A relação direta entre negritude e
vulnerabilidade social sempre foi óbvia e observável ao longo de toda a
história do Brasil.
Quando, a partir da Abolição, em 1888, o governo brasileiro ignorou a
necessidade de implementar políticas para a integração social dos
ex-escravos, deixando-os à própria sorte, criou um dever para as
gerações futuras.
Parte grande da população brasileira descende dessa gente que sobreviveu
à desumanização pela escravatura e ao descaso continuado das
autoridades. Descender de gente escravizada, que sofreu uma experiência
trágica sob condições degradantes por anos a fio, deixa marcas profundas
no indivíduo.
Os efeitos negativos sobre a autoestima, a autoconfiança e o acesso aos
bens sociais se projetam por gerações. Quando se fala de
"afrodescendente", evoca-se esse legado da escravidão, esse ônus pessoal
derivado de uma injustiça histórica.
O governo brasileiro reconhece esse problema.
Está longe de resolvê-lo, mas tem investido em sua solução. Um dos instrumentos que utiliza são políticas de ação afirmativa.
Em 2002, o Itamaraty foi pioneiro em criar programas para a promoção do
acesso de afrodescendentes a cargos públicos federais. Com base nessas
ações, na semana passada, Mathias de Souza Lima Abramovic foi aprovado
na primeira fase do vestibular para a carreira diplomática como cotista
afrodescendente. No entanto, foi denunciado por ser branco demais.
Não conheço todas as etnias que se escondem sob os nomes Souza, Lima e
Abramovic, mas sei que a identidade de uma pessoa não é feita apenas de
elementos visíveis. Só Mathias sabe o preço que pagou por sua
afrodescendência. Até prova em contrário, prefiro acreditar em sua
boa-fé.
Alexandre Vidal Porto é escritor e diplomata. Mestre em
direito pela Universidade Harvard, trabalhou nas embaixadas em Santiago,
Cidade do México e Washington e na missão do país junto à ONU, em Nova
York. Escreve aos sábados, a cada duas semanas, no caderno "Mundo".
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