Celso Ming
Por que os clássicos que se dedicaram a rastrear a origem e o destino do povo brasileiro, não encontraram aí o DNA do imigrante?
A leitura do último livro do professor Fernando Henrique Cardoso – Pensadores que Inventaram o Brasil
– é fascinante pela síntese, erudição, qualidade do texto e pela
percepção acurada da história do pensamento dos brasileiros sobre si
mesmos.
Mas Fernando Henrique não poderia avaliar o que os inventores do
Brasil não inventaram. E ali estão Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha,
Paulo Prado, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr.,
Antonio Candido, Florestan Fernandes, Celso Furtado e Raimundo Faoro.
Paradoxalmente, nenhum deles leva em conta as contribuições do imigrante
na formação do Brasil moderno.
Gilberto Freyre, no consagrado Casa Grande e Senzala,
observa, de passagem, que “os portugueses triunfaram onde outros
europeus falharam”. Ele se refere a franceses, alemães, holandeses e
nórdicos. Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil,
quando contrasta a capacidade de adaptação do português com a dos demais
europeus, nota que “colonos de pura estirpe germânica” regrediram a
métodos predatórios e dissipadores, mesmo em clima temperado. Mas não
foi além. Os demais silenciam sobre a importância do imigrante na
construção da riqueza e da cultura nesta terra.
E, no entanto, o Brasil vem sendo cada vez mais plasmado pela herança
de sírios, libaneses, alemães, italianos, japoneses, espanhóis,
poloneses e suíços que desembarcaram aqui a partir da segunda metade do
século 19, inicialmente para substituir a mão de obra escrava (veja o
gráfico).
A história da indústria, por exemplo, foi escrita pelos Matarazzos,
pelos Gerdaus e milhares de outros. A economia do engenho de açúcar e da
escravidão foi substituída pela usina de açúcar e de etanol e, no lugar
dos senhores de engenho, encontramos cada vez mais sobrenomes
italianos. Entre os campeões da soja, do algodão e do gado, sucedem-se
descendentes de imigrantes. Os novos bandeirantes que vêm abrindo as
fronteiras do agronegócio nacional são gaúchos, barrigas-verdes e
paranaenses. Carregam no seu jeito de falar sotaques alemães e
italianos.
Sem toda essa gente, não dá para contar a história das artes
plásticas, da arquitetura e da medicina no Brasil. O primeiro grande
ídolo brasileiro do futebol chamava-se Friedenreich. Depois vieram
Bauer, De Sordi, Bellini, Altafini, Sani, Rivellino, Piazza, Taffarel…
No automobilismo, Fittipaldi e Piquet foram campeões mundiais. Nas
passarelas, a rainha é Bündchen.
Ah, a política… Dos 13 últimos presidentes da República do Brasil, 6
levam sobrenomes europeus: Kubitschek, Goulart, Medici, Geisel, Collor
(aportuguesamento de Koeller) e Rousseff.
Os imigrantes contribuíram para a reorganização do trabalho.
Inventaram o colonato. Desenvolveram aqui uma nova ética do trabalho,
que não se identifica com a protestante, baseada no dogma da
predestinação, de que nos fala Max Weber, mas mudou o jeito do
brasileiro de encarar a vida, com muito suor no rosto, calos nas mãos e
vontade de chegar lá.
Até mesmo o movimento sindical brasileiro tem dívidas com os
imigrantes anarquistas espanhóis e italianos, que não se dedicaram aqui a
demolir o Estado, como na Europa, mas a conquistar para nativos e
forasteiros os direitos do trabalhador.
Por que os rastreadores da identidade do brasileiro só reconhecem a
importância da contribuição do português, do índio e do negro e ignoram a
do imigrante? Talvez porque a maioria deles escreveu e foi reconhecida
ainda na década de 30, quando o Brasil estava em guerra com três dos
principais países de onde provieram nossos imigrantes: Alemanha, Itália e
Japão.
No entanto, mesmo para o professor Darcy Ribeiro, que lançou seu livro em 1995, o que conta para a constituição do Povo Brasileiro e para sua cultura são elementos fornecidos pelo português, pelo índio e pelo negro. Não há lá traço de imigrante.
O Brasil mudou e vai sendo reinventado, mas até agora não surgiu
nenhum grande pensador que incorporasse às nossas raízes a contribuição à
brasilidade proporcionada por essa gente que trocou tudo o que tinha –
pátria, família, idioma, amizades, cultura, pertences – pelo sonho de
refazer sua vida no Brasil.
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