O Banco Central, na gestão de Alexandre Tombini, foi omisso diante das denúncias de falcatruas em liquidações bancárias
FELIPE PATURY, COM REPORTAGEM DE MARCELO SPERANDIO E TERESA PEROSA
13/09/2013 21h33
- Atualizado em
14/09/2013 13h57
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As autoridades costumam reagir a escândalos como se estivessem
brincando de batata quente: tentam livrar-se do problema e passá-lo à
mão alheia. Foi o que fez o Banco Central quando foram descobertos
desvios na intervenção do Banco Cruzeiro do Sul. O caso enxovalhou o
Fundo Garantidor de Créditos (FGC), que se orgulhava de ter boa
reputação no mercado financeiro. Criado pelos bancos em 1995, para
evitar prejuízos a correntistas de instituições quebradas, o FGC
adquiriu outras funções com o passar do tempo. Agora, quando um banco
balança, ele entra em campo para emprestar dinheiro. Se não é
suficiente, trata de arranjar um comprador. Poderes tão amplos lhe
conferiram credenciais para assumir a gestão de bancos falidos. A
primeira vez em que isso aconteceu foi junho do ano passado, quando o
Banco Cruzeiro do Sul entrou em colapso. O BC interveio e nomeou o FGC
como administrador. Celso Antunes, então diretor executivo do FGC, cargo
equivalente ao presidente, assumiu o comando. Uma vez no Cruzeiro do
Sul, Antunes contratou uma microempresa de um antigo sócio seu para
prestar serviços multimilionários à massa falida. O negócio, revelado
por ÉPOCA em agosto, resultou na demissão de Antunes e de outro diretor
do FGC, José Lattaro.
Quando o escândalo estourou, o BC se disse surpreso, afastou os
envolvidos e abriu uma investigação. Caso encerrado? Não. Aparecem agora
provas de que a cúpula do BC conhecia há pelo menos 17 meses e em
detalhes o esquema montado pelos diretores do FGC nas liquidações
bancárias. Subordinados diretos do presidente do BC, Alexandre Tombini,
os diretores de Organização do Sistema Financeiro, Sidnei Marques, e de
Fiscalização, Anthero Meirelles, foram informados oficialmente e por
duas vezes das atividades de Antunes e Lattaro. Uma correspondência da
cúpula do FGC enviada à dupla relatou o curso das negociações para
contratação da empresa vinculada a Antunes. Outra carta enviada à área
de liquidações do BC detalha as gestões de Antunes e Lattaro e aponta a
possibilidade de essas operações serem enquadradas na Lei de Crime do
Colarinho Branco, como gestão temerária, e de incorrerem em violação de
sigilo bancário.
>> O novo escândalo na bancarrota do Banco Cruzeiro do Sul
>> Cai diretor executivo do FGC, Celso Antunes
>> Cai diretor executivo do FGC, Celso Antunes
Toda a cadeia de comando da área de liquidações do BC acompanhou as
negociações conduzidas por Antunes e Lattaro. Pior: a troca de cartas
ocorreu três meses antes de o BC decretar a intervenção no Cruzeiro do
Sul e de nomear Antunes como administrador. Se o BC sabia das intenções
de Antunes e de seus colegas, por que o nomeou para essa função? Se não
enxergou conflito de interesses no fato de Antunes gerir um banco em
nome do fundo e de contratar um ex-sócio sem qualificação para fazer um
negocião, por que ele foi desligado depois? Se sabia do caso em março de
2012, por que só tomou providências em maio deste ano? Dois diretores
do BC esconderam as denúncias de Tombini ou ele as ignorou? “O
presidente não tinha conhecimento. O presidente e os diretores têm
alçadas diferentes”, afirma o procurador-geral do BC, Isaac Ferreira.
A liquidação de um pequeno banco carioca, o Morada, pode trazer
esclarecimentos tão valiosos quanto os de Ferreira. Se não explica as
razões que levaram o BC a fechar os olhos para as intenções dos
diretores do FGC, ao menos mostra como isso ocorreu. Dedicado à
exploração de crédito consignado, o Morada entrou em crise no início de
2011. Para se manter vivo, recorria a empréstimos do FGC. Em 28 de
abril, abriu no vermelho. O BC interveio e nomeou como gestor Sidney
Ferreira, que atuara nas crises do Banco Nacional e do Banerj. Cinco
meses depois, Sidney passou a ser assediado pelos diretores do FGC.
Lattaro levou a Sidney dois empresários interessados em prestar serviços
ao Morada. José Marcelo Brandão tinha uma empresa chamada M7 Cobranças
Ltda. Carlos Cesarini apresentou-se como proprietário de uma certa
Interbank Soluções Tecnologia e Serviços. Por que eles eram ciceroneados
pelo FGC? “A M7 foi contratada pelo FGC para prestar serviços de gestão
das carteiras (do Morada) logo após a liquidação”, diz o
presidente do Conselho de Administração do FGC, Antonio Carlos Bueno. A
resposta de Cesarini envolve o BC: “No Banco Morada, a pedido do Banco
Central, o FGC faria uma gestão no resto da carteira que tinha lá”.
No primeiro encontro, Brandão e Cesarini sugeriram ao liquidante Sidney
que os contratasse para administrar os créditos consignados do Morada.
Esse encontro e os subsequentes foram todos registrados por Sidney. Em
outubro, os empresários tiveram mais dois encontros com ele. Depois, a
conversa de Lattaro, Brandão e Cesarini mudou de rumo. Em vez de prestar
serviços ao Morada, eles queriam que o FGC comprasse os ativos do banco
e, depois, os contratasse para administrá-los. Uma proposta chegou a
ser enviada formalmente a Sidney por e-mail em 19 de outubro de 2011.
Uma semana depois, o FGC informou, também por e-mail, ter desistido da
compra.
Em meio a idas e vindas, o FGC e os empresários voltaram a falar em
prestação de serviços. Sidney recebeu, então, um contrato que ele
deveria firmar com o FGC. Em 19 de dezembro, Lattaro, Brandão e Cesarini
finalmente explicitaram seus planos: o Morada cederia os ativos ao FGC,
que contrataria Brandão para fazer as cobranças e Cesarini para
processar dados. Seriam remunerados com 3,5% do valor das prestações
pagas mensalmente pelos devedores dos créditos consignados. Seguiu-se
uma discussão de valores. Sidney alegou que os 3,5% eram mais do que o
lucro que o Morada tinha com as operações. Por isso, o rombo do banco
aumentaria, em vez de encolher. O trio reclamou que ele não entendera os
termos da operação. Sidney impôs outros obstáculos. Entre eles, exigiu
um portfólio da M7 Cobranças e da Interbank, provando que elas tinham
experiência nesse tipo de trabalho.
Como Sidney relutava em assinar o contrato, os diretores do FGC levaram o caso a Brasília. Em 3 de fevereiro, Antunes enviou um e-mail ao chefe do Departamento de Liquidações do BC, Dawilson Sacramento. Nele, pede a Sacramento que “oriente” o liquidante a “permitir o início dos trabalhos (...); liberar o acesso irrestrito às informações; prestar todas as informações necessárias”. Dias depois, Antunes reuniu-se com Sidney para lhe dar um ultimato. Teria uma semana para assinar o contrato. Caso contrário, o FGC desistiria do negócio. A semana se passou, e Sidney nada fez, apesar de cobrado pelo adjunto de Sacramento.
Em vez de assinar o papel, Sidney mandou ao FGC uma carta de seis páginas, em que relata em detalhes suas reuniões com os empresários e representantes do FGC. Elas foram acompanhadas por autoridades do Departamento de Liquidações, enviadas de Brasília, ou pelos chefes dessa área no Rio de Janeiro. A carta de Sidney vai além. Diz que o contrato não encontra respaldo no estatuto do FGC, que Antunes e Lattaro não tinham alçada para assinar esse tipo de documento e que a transferência de dados dos créditos consignados para a M7 Cobranças nos termos exigidos por Antunes e pelo atual diretor executivo do FGC, Fabio Mentone, configuraria quebra de sigilo bancário. Sidney passa, então, a apontar irregularidades graves.
Ele relata que a M7 Cobranças é uma
microempresa com R$ 1.000 de capital. Funciona na casa do próprio dono,
que não tem empregados, telefone nem cartão de visita. Sidney diz que,
se a contratasse, incorreria em crime de gestão temerária, descrito na
Lei do Colarinho Branco. A situação da Interbank não é melhor. Cesarini,
que se apresentava como dono, não aparecia como sócio no registro da
empresa na Junta Comercial. Em lugar dele, estavam seu filho e,
surpreendentemente, Antunes, do FGC. A empresa que estava registrada em
nome de Cesarini era a Interbank Consultoria em Informática, considerada
inapta pela Junta Comercial. Esse tipo de punição ocorre quando não há
declaração de Imposto de Renda. Com as seis páginas da correspondência,
Sidney enviou também um pequeno dossiê embasando suas afirmações.
A carta foi respondida no dia seguinte, 1º de março. A réplica não foi assinada por Antunes, mas pelo chefe dele, Antonio Carlos Bueno. Por que Bueno responde a denúncias feitas contra Antunes? Não está claro. O destinatário também não é Sidney. Em vez dele, aparecem os diretores do BC Sidnei Marques e Anthero Meirelles. Bueno deixa claro que anexou a denúncia de Sidney às três páginas que escreveu à dupla do BC. Por que os dois diretores? “Para deixá-los cientes das dificuldades que vínhamos encontrando, decorrentes da quebra do Morada, e de seus efeitos sobre o sistema financeiro”, diz Bueno, por meio de sua assessoria. No texto, Bueno espinafra Sidney, responde às denúncias, defende Antunes e afirma: “Não mais daremos continuidade junto àquele Banco ao trabalho idealizado”. Trata-se de uma ameaça? “O FGC nunca fez nem faria ameaças a ninguém”, afirma Bueno.
A carta foi respondida no dia seguinte, 1º de março. A réplica não foi assinada por Antunes, mas pelo chefe dele, Antonio Carlos Bueno. Por que Bueno responde a denúncias feitas contra Antunes? Não está claro. O destinatário também não é Sidney. Em vez dele, aparecem os diretores do BC Sidnei Marques e Anthero Meirelles. Bueno deixa claro que anexou a denúncia de Sidney às três páginas que escreveu à dupla do BC. Por que os dois diretores? “Para deixá-los cientes das dificuldades que vínhamos encontrando, decorrentes da quebra do Morada, e de seus efeitos sobre o sistema financeiro”, diz Bueno, por meio de sua assessoria. No texto, Bueno espinafra Sidney, responde às denúncias, defende Antunes e afirma: “Não mais daremos continuidade junto àquele Banco ao trabalho idealizado”. Trata-se de uma ameaça? “O FGC nunca fez nem faria ameaças a ninguém”, afirma Bueno.
O lance seguinte foi dado por Sidney. Em 6 de março do ano passado, ele
enviou uma tréplica à Gerência de Liquidações do Rio de Janeiro. Os
diretores do BC Sidnei Marques e Anthero Meirelles são mencionados mais
uma vez no texto. Cinco dias depois de enviar esse documento, ele foi
demitido. No ato de sua exoneração, assinado pelo diretor Sidnei
Marques, consta que foi “dispensado, a pedido”. Questionado, Marques deu
outra explicação: “O Departamento de Liquidações me comunicou várias
razões para a substituição”, diz. Em e-mail a ÉPOCA, ele as enumera:
“Retenção de recursos de terceiros, falta de providências para entrega
das carteiras cedidas antes da liquidação, falta de formação do quadro
de credores”. Já que não foi a pedido, a demissão de Sidney tem relação
com as denúncias que ele fez? O BC afirma que não. E que providências os
diretores Marques e Meirelles tomaram a respeito dos alertas? Nada.
“Tendo sido comunicado pelo FGC de que aquela entidade não mais
conduziria qualquer trabalho de gestão das carteiras de crédito, nada
haveria (sic) de providência a ser tomada”, afirma Marques.
“Não havia providências a ser tomadas pela Diretoria de Fiscalização”,
disse Meirelles.
Outro funcionário aposentado do BC foi designado para a liquidação do Morada, no lugar de Sidney Ferreira. Para assumir o cargo, Osmar Brasil teve de deixar a liquidação de uma administradora de consórcio carioca, a Libra, onde teve uma experiência pouco usual. Os sócios da Libra apresentaram à Polícia Federal uma queixa-crime contra ele. Nela, Brasil é acusado de peculato, adulteração de documentos e formação de quadrilha. É comum que os liquidados se revoltem contra os liquidantes. Curiosa foi a reação de Brasil: ele também apresentou uma queixa-crime. Só que, na dele, os delitos são atribuídos a seus subordinados na Libra.
Na gestão de Brasil, Cesarini e Brandão finalmente assumiram os serviços de processamento de dados e cobrança do Morada. Não foram contratados diretamente pelo banco. Recorreram a uma triangulação. Seus serviços foram pagos pelos bancos que tinham negócios com a IMS Tecnologia e Serviços, sucessora da M7 Cobranças. De acordo com um funcionário recrutado para trabalhar na liquidação do Morada, a IMS recebeu R$ 25 milhões pelos serviços prestados. Cesarini não confirma o valor. A mesma IMS recebeu R$ 70 milhões pelos serviços prestados no Banco Cruzeiro do Sul. É um resultado espetacular, para uma empresa que, um ano e meio antes, tinha R$ 1.000 de capital. O BC informou que esse contrato já foi encerrado. Agora liquidante do Banco Rural, Brasil não atendeu os telefonemas para comentar o assunto nem respondeu aos e-mails com questões referentes ao Morada e ao Libra.
Integrantes da equipe que participou da liquidação do Morada relataram que as gestões do FGC para a contratação da M7 Cobranças e da Interbank foram acompanhadas por toda a cadeia de comando do Departamento de Liquidações do BC. Os nomes dos funcionários subalternos que não constam das correspondências foram preservados nesta reportagem. O mesmo benefício não se pôde dar aos diretores Sidnei Marques, Anthero Meirelles – ou ao presidente Alexandre Tombini. A carta enviada por Bueno a Marques e Meirelles, com a denúncia de Sidney anexada, exige explicações. O mesmo ocorre com as explicações dadas em carta por Sidney a seus chefes. Esses dois documentos provam que o BC mentiu ao afirmar, há um mês, que desconhecia irregularidades envolvendo a IMS. Por quê? Funcionários públicos como os do BC são obrigados a tomar providências quando informados de irregularidades. Nada fizeram. O BC diz que Tombini não sabia de nada e que não tinha razão funcional para fazê-lo. É crível que, numa diretoria de oito membros, dois tenham sido informados de irregularidades que poderiam constituir crime e, em vez de dar ciência ao chefe, tenham silenciado? Não há uma boa saída para a direção do Banco Central.
Outro funcionário aposentado do BC foi designado para a liquidação do Morada, no lugar de Sidney Ferreira. Para assumir o cargo, Osmar Brasil teve de deixar a liquidação de uma administradora de consórcio carioca, a Libra, onde teve uma experiência pouco usual. Os sócios da Libra apresentaram à Polícia Federal uma queixa-crime contra ele. Nela, Brasil é acusado de peculato, adulteração de documentos e formação de quadrilha. É comum que os liquidados se revoltem contra os liquidantes. Curiosa foi a reação de Brasil: ele também apresentou uma queixa-crime. Só que, na dele, os delitos são atribuídos a seus subordinados na Libra.
Na gestão de Brasil, Cesarini e Brandão finalmente assumiram os serviços de processamento de dados e cobrança do Morada. Não foram contratados diretamente pelo banco. Recorreram a uma triangulação. Seus serviços foram pagos pelos bancos que tinham negócios com a IMS Tecnologia e Serviços, sucessora da M7 Cobranças. De acordo com um funcionário recrutado para trabalhar na liquidação do Morada, a IMS recebeu R$ 25 milhões pelos serviços prestados. Cesarini não confirma o valor. A mesma IMS recebeu R$ 70 milhões pelos serviços prestados no Banco Cruzeiro do Sul. É um resultado espetacular, para uma empresa que, um ano e meio antes, tinha R$ 1.000 de capital. O BC informou que esse contrato já foi encerrado. Agora liquidante do Banco Rural, Brasil não atendeu os telefonemas para comentar o assunto nem respondeu aos e-mails com questões referentes ao Morada e ao Libra.
Integrantes da equipe que participou da liquidação do Morada relataram que as gestões do FGC para a contratação da M7 Cobranças e da Interbank foram acompanhadas por toda a cadeia de comando do Departamento de Liquidações do BC. Os nomes dos funcionários subalternos que não constam das correspondências foram preservados nesta reportagem. O mesmo benefício não se pôde dar aos diretores Sidnei Marques, Anthero Meirelles – ou ao presidente Alexandre Tombini. A carta enviada por Bueno a Marques e Meirelles, com a denúncia de Sidney anexada, exige explicações. O mesmo ocorre com as explicações dadas em carta por Sidney a seus chefes. Esses dois documentos provam que o BC mentiu ao afirmar, há um mês, que desconhecia irregularidades envolvendo a IMS. Por quê? Funcionários públicos como os do BC são obrigados a tomar providências quando informados de irregularidades. Nada fizeram. O BC diz que Tombini não sabia de nada e que não tinha razão funcional para fazê-lo. É crível que, numa diretoria de oito membros, dois tenham sido informados de irregularidades que poderiam constituir crime e, em vez de dar ciência ao chefe, tenham silenciado? Não há uma boa saída para a direção do Banco Central.
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